O amor a Deus, ato principal da caridade

São VicenteEmelly Tainara Schnorr

A excelência da caridade sobre as outras virtudes consiste, e de maneira especial, na razão do objeto material primário ao qual se relaciona, ou seja, o próprio Deus, com o Qual nos unimos.1 Além disso, seu objeto se estende por dois aspectos – a nós mesmos e ao próximo –, mas sempre em função de Deus:

O objeto material sobre o que recai a caridade o constitui primariamente a Deus, e secundariamente a nós mesmos e todas as criaturas racionais que chegaram ou podem chegar à eterna bem-aventurança, e ainda, em certo modo, todas as criaturas, enquanto são ordenáveis à glória de Deus”.2

Em sua dimensão fundamental – o amor a Deus em Si mesmo –, a caridade é definida por São Tomás como uma “amizade do homem para com Deus”:

“[…] Já que há uma certa comunhão do homem com Deus, pelo fato que Ele nos torna participantes da bem-aventurança, é preciso que uma certa amizade se funde sobre esta comunhão. […] O amor fundado sobre esta comunhão é a caridade. É, pois, evidente que a caridade é uma amizade do homem para com Deus”.3

Acrescenta ainda o Doutor Angélico que, para se ter uma amizade verdadeira, é preciso que o amor seja recíproco:

“Segundo Aristóteles, não é qualquer amor que se realiza a noção de amizade, mas somente o amor de benevolência, pelo qual queremos bem a quem amamos. […] Entretanto, a benevolência não é suficiente para se constituir uma amizade, é preciso que haja reciprocidade de amor”.4

Essa reciprocidade de amor é um ponto dominante no dinamismo da caridade. Desde antes da existência do mundo, o amor de Deus foi derramado sobre nós com abundância – “na vontade, no amor e no coração d’Ele, eu estive sendo amado por Ele desde toda a eternidade”.5

Além de nos criar, Deus está constantemente nos sustentando no ser; faz-nos participar de sua própria natureza e nos cumula de favores e graças. Ademais, Ele arde em anseios pela nossa salvação, para, no Céu, gozarmos eternamente de seu convívio numa felicidade eterna: “Nós estaremos cheios de alegria quando entrarmos no Céu, mas Deus também estará contentíssimo por ver que, afinal, o plano eterno d’Ele a meu respeito se realizou. E a alegria d’Ele será maior do que a nossa, porque Ele nos ama, Ele nos quer!”.6

Como retribuir a Deus essa infinitude de amor e dileção manifestado por nós? Diz um adágio: “Amor com amor se paga”. Portanto, Ele somente procura a nossa correspondência de amor; o que Ele mais deseja é que também O amemos.

“O amor é o único entre todas as tendências, sentidos e afeições da alma, com o qual a criatura pode responder a seu Autor, não com plena igualdade, mas sim de uma maneira muito semelhante. […] Pois quando Deus ama, não deseja outra coisa senão que Lhe amemos; porque não ama para outra coisa senão para ser amado, sabendo que basta o amor para que sejam felizes os que se amam”.7

E é este amor o ato principal da caridade, o qual apresenta duas formas características: o amor afetivo e o amor efetivo. Entre ambos, o mais importante e fundamental é o amor afetivo, pois se trata do exercício direto e imediato da virtude da caridade considerada em si mesma, consistindo no próprio amor a Deus, tal como brota da vontade informada pelo hábito infuso da divina caridade.8

É um amor cheio de complacência e afeto, produzindo descanso e um gozo fruitivo na vontade. Isto se passa, porque, dado que o amor é um movimento da vontade em procurar o bem, quando o encontra, enche-se de gáudio e emoção. Ora, Deus é o Supremo Bem, em cuja contemplação a alma “sente frêmitos e ímpetos de alegria sem igual pelo prazer que tem de olhar os tesouros das perfeições do rei de seu santo amor”.9

Tomada por esse amor, a alma suspira em desejos de estar com o Amado e de atingir uma plena e definitiva união com Ele. Entretanto, dificilmente neste vale de lágrimas ela poderá saciar este anseio, esperando, por esta razão, a vida eterna.

“O coração, pois, que neste mundo não pode nem cantar nem ouvir os louvores divinos a seu gosto, entra em desejos sem igual de ser liberto dos laços desta vida para ir à outra onde se louva tão perfeitamente o bem-amado celeste, e, havendo-se esses desejos apoderado do coração, tornam-se tão poderosos e prementes no peito dos amantes sagrados, que, banindo quaisquer outros desejos, põem em desgosto todas as coisas terrenas, e tornam a alma toda desfalecida e doente de amor; e mesmo essa paixão progride às vezes tanto, que, se Deus o permitir, morre-se dela”.10

Entretanto, é salutar ter bem presente que o amor não se traduz somente nas alegrias e consolos espirituais internos que dele dimanam, mas exige que tenha uma comprovação manifestada em obras, pois, do contrário, correria o risco de ser um amor romântico, baseado puramente em sentimentos. A sua perfeição só se completa com a outra forma de amor, que é o efetivo.

“O amor verdadeiro não vai unido necessariamente a essas doçuras e consolações sensíveis, ainda pode ajudar-se delas quando aparecem espontaneamente como um presente de Deus. A pedra de toque do verdadeiro amor consiste no exercício das virtudes: “O amor – diz São Gregório – tem que comprová-lo com as obras”.11

N S JesusAssim, o amor efetivo apresenta dois corolários: o cumprimento da lei divina e a perfeita conformidade da nossa vontade com a de Deus.12

Esta conformidade de nossa vontade com a de Deus, deve ser inteira e amorosa. Exemplo disso foi o piedoso Jó que, tendo sido provado ao máximo, perdendo todos os seus bens, familiares e amigos, conformou-se com a vontade de Deus, dizendo: “Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor! Como foi do agrado do Senhor, assim aconteceu” (Jo 1, 21).

Quanto à lei divina, ela deve ser praticada por puro amor, ou seja, necessita ser cumprida para agradar a Deus e não pelo interesse que poderia proporcionar a recompensa eterna; poderia não haver Céu nem inferno, mas a alma continuaria amando e temendo a Deus.

Donde a importância do primeiro mandamento, que, no Decálogo, ocupa um lugar proeminente sobre os outros nove, devendo, por isso, ser praticado com um zelo maior. Do contrário, os demais sofreriam um abalo, ocasionando sérias consequências tanto no desenvolvimento pessoal, quanto no social. Mons. João Clá confirma o acima dito:

“[…] O Primeiro Mandamento é o mais importante de todos, e é ele que nos dá a possibilidade de compreender bem todos os outros. A prática do Primeiro Mandamento da Lei de Deus é fundamental, e essa prática nós temos que realizar desde o momento em que acordamos até o momento em que vamos dormir, constantemente devemos estar com o nosso pensamento, nossa preocupação e nosso amor colocado nas coisas de Deus”.13

1 Cf. ROYO MARIN, Antonio. Teología de la perfección cristiana. Op. cit. p. 126.
2“El objeto material sobre que recae la caridad lo constituye primariamente Dios, y secundariamente nosotros mismos y todas las criaturas racionales que han llegado o pueden llegar a la eterna bienaventuranza, y aun, en cierto modo, todas las criaturas, en cuanto son ordenables a la gloria de Dios” (Ibid. p. 511. Tradução da autora).
3 “[…] Sit aliqua communicatio hominis ad Deum secundum quod nobis suam beatitudinem communicat, super hac communicatione oportet aliquam amicitiam fundari. […] Amor autem hac communicatione fundatus est caritas. Unde manifestum est quod caritas amicitia quaedam est hominis ad Deum” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiae. II-II, q. 23, a. 1).
4 “Secundum Philosophum, in VIII Ethic., non quilibet amor habet rationem amicitiae, sed amor qui est cum benevolentia: quando scilicet sic amamus aliquem ut ei bonum velimus. […] Sed nec benevolentia sufficit ad rationem amicitiae sed requiritur quaedam mutua amatio: quia amicus est amico amicus. Talis autem mutual benevolentia fundatur super aliqua communicatione” (Loc. cit).
5 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Homilia da 4ª feira, da XIV Semana do Tempo Comum. Caieiras, 9 jul. 2008. (Arquivo IFTE).
6 Loc. cit.
7 “Solus est amor ex omnibus animae motibus, sensibus atque affectibus, in quo potest creatura, etsi non ex aequo, respondere Auctori, vel de simili mutuam rependere vicem. […] Nam cum amat Deus, non aliud vult, quam amari: quippe non ad aliud amat, nisi ut ametur, sciens ipso amore beatos, qui si amaverint” (SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones sobre el Cantar de los Cantares. In: Obras completas. Madrid: BAC, 1987. Vol. V. p. 1030).
8 Cf. ROYO MARIN, Antonio. Teología de la caridad. Op. cit. p. 219-220; 231.
9 SÃO FRANCISCO DE SALES. Op. cit. p. 248.
10 Ibid. p. 274.
11 “El amor verdadero no va unido necesariamente a esas dulzuras e consolaciones sensibles, aunque puede ayudarse de ellas cuando se presentan espontáneamente como un regalo de Dios. La piedra de toque del verdadero amor consiste en el ejercicio de las virtudes: ‘El amor – dice San Gregorio – hay que probarlo con las obras’” (ROYO MARÍN, Antonio. Teología de la caridad. Op. cit. p. 232. Tradução da autora).
12 Cf. Ibid. p. 233-242.
13 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Homilia da 4ª feira, da III Semana da Quaresma. Caieiras, 12 mar. 2008. (Arquivo IFTE).

2 responses to “O amor a Deus, ato principal da caridade”

  1. É verdade que pra o homem ter amor de verdade é preciso que ele seja muito bom, pois no mundo está muito a falta de amor por parte dos homens desta terra prometida, e Deus quer que o homem tenha mais amor para com os homens da terra. Que Deus e Jesus Cristo abençoe a todos!

  2. Pio Quimas de Oliveira disse:

    Salve Maria !
    Eu costumo brincar dizendo que o amor é, com certeza, um “sentimento” puramente divino que Deus nos “emprestou”.
    É tão sublime que não parece ser coisa de seres humanos.
    Refletindo o texto acima, confirmo que a minhas palavras não estão tão longe da verdade, visto que não conseguiríamos cumprir o Decálogo sem cumprirmos o Primeiro Mandamento.
    Ou seja, se não partirmos do amor a DEUS não somos capazes de amar ao próximo como a nós mesmos.
    DEUS é a fonte única do amor.

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