A dor, mistério do amor
Irmã Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP
Naquele dia, um casal, levando o mais belo de todos os meninos, atravessou os umbrais do recinto sagrado, com o intuito de cumprir as prescrições da Lei a respeito dos primogênitos. Na aparência, aquela cena nada tinha de extraordinário: com muita frequência as famílias israelitas, vindas das mais variadas cidades, chegavam a Jerusalém, trazendo seus filhos para apresenta-los ao Senhor e oferecer o sacrifício prescrito pela Lei: um par de rolas ou dois pombinhos (cf. Lc 2-24). Quase sempre as mães preferiam associar esta cerimônia àquela da sua própria purificação, à qual estavam obrigadas pelas rígidas normas do Levítico.
Entretanto, nessa ocasião, o ritual da apresentação revestia-se de dimensões verdadeiramente divinas e fora previsto com séculos de antecedência pelo profeta Ageu: “Encherei de minha glória este templo — diz o Senhor do universo. A prata e o ouro me pertencem — oráculo do Senhor do universo. O esplendor futuro deste templo será maior que o primeiro — oráculo do Senhor do universo. Neste lugar Eu darei a paz — diz o Senhor do universo” (Ag 2, 7b-10). E por Malaquias: “Logo chegará a seu templo o Dominador, que vós procurais, e o Anjo da Aliança, que vós desejais” (Ml 3, 1b).
Com efeito, aquela arrebatadora criança, conduzida nos braços de sua Mãe para submeter-Se humildemente aos preceitos da Lei mosaica, era o próprio Dominador, o Filho Unigênito de Deus, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei (cf. Gl 4, 5).
Dia de gáudio e de glória aquele em que, por fim, as profecias atingiam sua realização e o Divino Menino começava a ser reconhecido pelos que “em Jerusalém esperavam a redenção” (Lc 2, 38).
“Uma espada transpassará a Tua alma”
Entrando no templo, Maria e José depararam-se com um ancião de venerável aspecto, que para lá se dirigira, cheio de esperança, sob a inspiração do Espírito Santo (cf. Lc 2, 27). Ao ver o Menino Jesus, Simeão, que poderia ser denominado o varão-esperança, logo começou a bendizer a Deus e a profetizar a respeito dEle, deixando admirados Seu pai e Sua mãe (cf. Lc 2, 33). Também Ana, a profetisa, que se encontrava no Templo, pôs-se a falar sobre Ele, tornando-se uma das primeiras anunciadoras da missão redentora de Jesus. Maria e José ouviam todas essas palavras, e Seus corações enchiam-se de gozo ao constatarem que o inefável mistério do qual ambos eram depositários, Deus Se dignara comunicá-lo também a outras almas, manifestando-lhes a presença de Cristo no mundo.
Simeão tomou o Menino nos braços e, após ter sido pago o imposto, entregou-O à Sua Mãe, dizendo-Lhe: “Uma espada transpassará a Tua alma” (Lc 2, 35).
Que contraste impressionante! Ali estava o casal princeps, duas criaturas escolhidas por Deus para servir de arquetipia à humanidade: Maria e José. Nesses momentos de consolação, nos quais a Luz descida do Céu para revelar-Se às nações começava a deitar seus primeiros raios, abria-se já, de maneira oficial, a “via dolorosa” que o Senhor apontava à Sua Santa Mãe. A alegria de Maria — de possuir um Filho que é Deus e de pertencer a um Deus que é Seu Filho — naquele instante transformou-se em tristeza. Auge de alegria e auge de tristeza conjugaram-se no coração da Virgem: quanta perplexidade nessa ocasião em que tudo deveria falar de júbilo e, entretanto… “uma espada transpassará a Tua alma”!
Pelo pecado, o sofrimento tornou-se inerente à condição humana
Por que quis Deus unir a dor à alegria num verdadeiro paradoxo, inevitável na vida humana? Todos nós, pelas inclinações da natureza, sempre propensa a buscar a felicidade e a fugir de qualquer sofrimento, somos incapazes de compreender essa maravilha, se não for por um especial auxílio da graça. Fora da filosofia cristã iluminada pela fé, o problema da dor tem sido sempre algo difícil de resolver. Enquanto alguns a concebem como um mal a ser evitado a todo custo, outros, passando ao extremo oposto, consideram-na imprescindível e chegam a fazer dela um prazer malsão e amargo, única saída para sua falta de esperança.
A Igreja, ao contrário, sempre tratou desse assunto de forma equilibrada. Em virtude do pecado original, o sofrimento tornou-se inerente à condição humana, e o homem deve utilizar-se dele para o serviço de Deus, transformando-o numa fonte de méritos e até de glória.
A respeito do modo de como os homens, tanto os bons quanto os maus, suportam as tribulações, assim escreve Santo Agostinho: “Embora justos e pecadores sofram um mesmo tormento, o resultado não é o mesmo. O mesmo fogo faz resplendecer o ouro, purificando-o, e a palha lançar fumaça; o mesmo trilho serve para limpar os grãos e quebrar as arestas… Assim também, uma mesma adversidade purifica e aperfeiçoa os bons, e destrói e aniquila os maus. Por conseguinte, numa mesma calamidade, os pecadores se revoltam e blasfemam contra Deus, enquanto os justos O glorificam e pedem misericórdia; a grande diferença de sentimentos não está na qualidade do mal que uns e outros padecem, mas na das pessoas que o sofrem. Sacudidos de um mesmo modo, o lodo exala um mau cheiro insuportável, e o bálsamo precioso um suavíssimo odor”.1
Cristo quis assumir a nossa carne em estado padecente
Para conhecermos a fundo todo o valor que se desprende da dor quando santamente aceita, bastanos observar que esta foi a via escolhida pela Providência para o próprio Homem-Deus e Sua Mãe Santíssima. Ao nos aproximarmos de um altar em qualquer igreja da terra, sempre o encontraremos presidido por um Crucifixo; e, aos pés dessa Cruz, indissociável do Filho, imaginamos uma Mãe que chora: Stabat Mater dolorosa, juxta crucem lacrimosa…
Reza a teologia que, para resgatar o gênero humano, teria bastado Nosso Senhor Jesus Cristo oferecer a Deus Pai um simples gesto, uma curta palavra, ou até mesmo um piscar de olhos, por serem de valor infinito todos os Seus atos.2 Portanto, uma única gota de sangue derramada durante a Circuncisão seria suficiente para consumar a obra da Redenção.3
Entretanto, decretou o Padre Eterno que Ele sofresse a Paixão e Morte de Cruz, pois não poderia permitir que a Seu Verbo — “efusão da luz eterna, espelho sem mancha da atividade de Deus, imagem de Sua bondade” (Sb 7, 26) — fosse negada uma glória em plenitude e esplendor. Foi por ilimitado amor ao Seu Unigênito que Deus permitiu as ignomínias da Flagelação, as humilhações do Ecce Homo, a exaustão da Via-Sacra e os tormentos da Crucifixão. O Filho, que por Sua natureza divina não era capaz de sofrer, quis assumir nossa carne em estado padecente, e não em corpo glorioso, como correspondia à Sua alma, a qual se encontrava na visão beatífica desde o primeiro instante da Encarnação.
Agindo desse modo, Deus não visou apenas operar a Redenção da forma mais esplêndida, mas quis propor aos homens de todos os tempos o Modelo perfeito a ser seguido. Assim se expressa a respeito deste tema o piedoso Pe. André Hamon: “Quando Deus, em Seus eternos decretos, decidiu a Encarnação do Verbo, propôs-Se apresentar aos olhos dos homens o modelo da vida nova que deveria salvá-los. Como homem, o Verbo Encarnado lhes mostraria o caminho; como Deus, lhes daria a garantia da perfeição do modelo. Suas virtudes seriam imitáveis, pois seriam a ação de um homem; e uma regra segura, já que seriam a ação de um Deus”.4
O mistério profundíssimo da Cruz
Ora, ao contemplarmos o Homem-Deus, deparamo-nos com esse profundo mistério: Ele, o Onipotente, o Senhor da Glória, a quem os Anjos adoram sem cessar, “fez-Se em tudo semelhante a nós, exceto no pecado” (Hb 4, 15), e sofreu as contingências da condição humana como fome, sede, sono, e fadiga. Para a mentalidade do homem moderno — pervadida pela ideia de um triunfalismo mal compreendido, da qual desapareceu quase completamente o verdadeiro sentido da dor —, a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo cravado na Cruz, clamando ao Pai a magnitude de Seu abandono, aparece como a de um fracassado. “Em verdade, Ele tomou sobre Si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós O reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado” (Is 53, 4).
Entretanto, devemos procurar discernir a sublime lição contida no Sacrifício do Calvário, cuja renovação incruenta se opera diariamente em todos os altares do mundo. Em seu poema O Triunfo da Cruz, assim canta São Luís Maria Grignion de Montfort: “É a Cruz, sobre a terra mistério profundíssimo, que não se conhece sem muitas luzes. Para compreendê-lo é necessário um espírito elevado. Entretanto, é preciso entendê-lo para que nos possamos salvar. […] A Cruz é necessária. É preciso sofrer sempre: ou subir ao Calvário ou perecer eternamente. E Santo Agostinho exclama que somos réprobos se Deus não nos castiga e nos prova”.5
Deus quis submeter o homem à prova
A vida no Paraíso Terrestre era isenta de qualquer incômodo. O homem estava mergulhado na felicidade: os vegetais se encontravam à sua disposição, os animais o serviam, não havia doenças nem cansaço, e, por um especial favor do Criador, a ameaça da morte não o atingia. Também sua alma vivia em paz, pois, graças ao dom da integridade, a carne e o espírito não entravam em conflito, e todas as paixões se ordenavam à luz da Fé.
Não obstante, em meio àquela agradável existência cheia de delícias, Deus quis que houvesse uma prova e, em consequência, uma pequena dor: “Não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente” (Gn 2, 17).
Era conveniente que Deus, seriedade infinita, exigisse do homem um tributo de sua submissão, por meio do qual este demonstrasse a autenticidade dos louvores e das honras que prestava a seu Criador. A aceitação desta prova era uma renúncia magnífica e uma homenagem ímpar, que partia da humanidade logo em seu nascedouro e se elevava até o trono de Deus.
O pecado e suas consequências
Ora, Adão e Eva sucumbiram à tentação. Talvez lhes tenha sobrevindo a ideia, não explícita, de que não deveria existir a mais leve dor na ordem da criação, e perante a prova que Deus lhes impunha tomaram uma atitude de revolta interior, induzidos a roubar a própria honra de Deus.
Os nossos primeiros pais pecaram. E a queda trouxe o castigo, em sentença proferida pelo próprio Deus: “Multiplicarei teus sofrimentos […] maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida” (Gn 3, 16-17).
O pecado produziu uma revolução nessa harmonia interior e exterior na qual antes viviam: o homem encontrou-se de repente cercado de mil perigos da natureza, os animais se lhe tornaram hostis, a terra produziu espinhos e abrolhos, e ele viu-se obrigado a comer o pão com o suor de seu rosto (cf. Gn 3, 18-19). Sua alma tornou-se vítima das más inclinações, sujeita ao erro e à rebeldia dos instintos contra os ditames da razão. E a História passou a registrar a peregrinação árdua e dolorosa de uma humanidade em guerra constante contra si mesma, conforme diz o Livro de Jó: “A vida do homem sobre a terra é uma luta” (Jó 7, 1).
A culpa de nossos primeiros pais atraiu sobre eles, e sobre sua posteridade, a maldição e a perda da amizade de Deus, reparável somente por meio do Batismo e da graça. Mas atingiu também a ordem do universo, da qual Adão fora feito rei: “Deste-lhe poder sobre as obras de Vossas mãos, Vós lhe submetestes todo o universo” (Sl 8, 7).
Afirma São Paulo: “A criação foi sujeita à vaidade (não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou), todavia com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia” (Rm 8, 20-22).
Um Deus abraçado à Cruz
Apesar de ter maculado a Criação, o pecado não conseguiu frustrar os planos de Deus, como era intuito do demônio. Pelo contrário, determinou Ele, em Seus insondáveis desígnios de misericórdia, estabelecer uma ordem do universo ainda mais bela e esplendorosa, nascida da Encarnação e do sacrifício de seu Filho Unigênito.
Na harmonia dessa nova ordem, haveria de ser preponderante o papel da dor. Tendo sido mal correspondida a prova no Paraíso, a vida da graça, trazida pela Redenção, não poderia conceber-se sem sofrimento, de modo que os “degredados filhos de Eva” reparassem a falta de seus pais.
Era preciso que os homens adorassem um Deus abraçado à Cruz, o Vir dolorum previsto por Isaías, cravado sobre o madeiro do opróbrio e da ignomínia, e tivessem diante do Homem-Deus moribundo todas as ternuras e venerações de que o coração humano é capaz.
Ele desceu a esta terra de exílio, atravessando as brumas do pecado sem Se deixar tocar por ele, e, tomando sobre Si as nossas fraquezas, com elas subiu ao Gólgota para ali consumar Seu holocausto e restituir aos homens a paz e a felicidade que haviam perdido.
É bem verdade que, ao longo dos três anos de vida pública, teve Ele um período brilhante aos olhos do mundo, durante o qual as multidões iam à sua procura, sôfregas de ouvir Seus ensinamentos e beneficiar-se de Seus milagres. Quando de Sua entrada solene em Jerusalém, a multidão cantava “hosana ao Filho de Davi” (Mt 21, 9). Houve, inclusive, aqueles que quiseram proclamá-Lo rei (cf. Jo 6, 15). Mas, em meio a todos os êxitos, a pior das dores incrustava-se em Seu Coração, delineando Sua missão de Servo Sofredor e deitando uma sombra sobre o futuro que O esperava: era a brutal falta de correspondência daqueles que mais O deveriam reconhecer. “Veio para o que era Seu, mas os Seus não O receberam” (Jo 1, 11).
Se, em Sua trajetória terrena, Nosso Senhor tivesse recebido sempre todas as glorificações do Tabor e do Domingo de Ramos, algo da Sua benquerença pelos homens e da Sua disposição de entregar a vida por eles teria deixado de refulgir aos nossos olhos, e não compreenderíamos suficientemente o mistério de amor que se discerne na Cruz e no Santo Sepulcro. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13).
Somos chamados a colaborar na obra da Redenção
Ora, movido por Seu ilimitado amor aos homens, Jesus quis também a participação deles na Sua dor. Ele não necessita de concurso humano algum para redimir-nos, uma vez que o Preciosíssimo Sangue derramado na Paixão bastaria para apagar os pecados de infinitas criaturas, mas deseja associar-nos a Seus sofrimentos e assim fazer-nos partícipes de Seus méritos e de Sua glória. É este o simbolismo da água que o sacerdote mistura ao vinho, na preparação do cálice para o Santo Sacrifício. Nossas dores, de si, valem menos até do que umas poucas gotas de água, pois, o mais das vezes, estão contaminadas por imperfeições e misérias; mas unidas ao “vinho que engendra virgens”, podem aquelas tornar-se uma “mesma e única bebida de salvação”.6
São Paulo mostrou ter penetrado a fundo nesse mistério, quando escreveu em sua epístola aos Colossenses: “ Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por Seu corpo que é a Igreja” (Cl 1, 24).
Esta passagem é assim comentada por Tanquerey: “Certamente, esta Paixão é, não somente completa, mas abundante e superabundante. No entanto, como Jesus é a cabeça de um corpo místico, do qual todos nós somos os membros, a Paixão deste Cristo místico se completa cada dia em seus membros sofredores, e ela não estará terminada senão quando o último dos eleitos tiver sofrido sua parte das dores de Cristo. […] Então a dor terá um sentido, então seremos verdadeiramente os colaboradores do Divino Salvador na obra da salvação das almas”.7
Crisol onde Deus lança as almas muito amadas
Levando isto em consideração, o papel da dor na vida humana adquire uma perspectiva tão elevada que torna inteiramente fora de propósito qualquer queixa ou inconformidade de nossa parte em relação às cruzes que Deus tenha por bem nos enviar.
Na aceitação inteira da vontade divina encontramos o melhor meio de restituir ao Criador a glória que Lhe foi negada pela primitiva desobediência, manifestando-Lhe, por um ato de conformidade com Seus desígnios, nosso tributo de amor e de reparação à Sua Majestade ofendida.
Ao mesmo tempo, se encetarmos as veredas da dor com ânimo resoluto, é-nos oferecida a ocasião de alcançar preciosos benefícios para o progresso de nossa vida sobrenatural. Dada a tendência natural do homem para o egoísmo, facilmente ele se esquece de Deus quando a felicidade e o sucesso parecem seguir seus empreendimentos. A adversidade é, pois, um poderoso auxílio para purificar a alma do apego excessivo às criaturas, obrigando-a a considerar a inanidade dos bens passageiros e voltar-se só para Deus, único Bem do qual tudo se pode esperar.
Tais disposições perante o sofrimento conferem um caráter respeitável àquele sobre o qual este se abate, tornando-o digno de admiração.
Nos dias de hoje, o sentido cristão da palavra “admirável” vai-se perdendo, dando lugar a conceitos deturpados, segundo os quais o homem, para alcançar a plena realização de sua personalidade, deve ser bem sucedido na vida, correr de vitória em vitória, sem jamais ser incomodado por qualquer revés ou dificuldade; só assim se tornará merecedor do aplauso e da aceitação dos demais. A experiência histórica, porém, nos revela o contrário: os homens sofredores, que ao longo de sua existência tiveram de enfrentar perigos, angústias, incompreensões e até mesmo aparentes catástrofes, mas, fortalecidos pela graça divina, acabaram vencendo, esses sim são verdadeiramente dignos da aprovação dos demais homens e do beneplácito de Deus.
A dor é, pois, o crisol onde a Providência lança as almas muito amadas, sobre as quais repousa uma especial predileção de Sua parte, para delas recolher apenas a prata finíssima, livre de qualquer impureza. O Livro do Eclesiástico deita uma luz sobre essa atraente temática: “Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça. Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação” (Eclo 2, 1-5).
Duas atitudes perante a tragédia
Recebida com resignação, ou com sobrenatural entusiasmo, a dor enaltece o homem e o convida a uma doação generosa de si mesmo, da qual, na prosperidade, talvez ele não se julgasse capaz. Assim, pode haver circunstâncias infelizes que, de modo inesperado, reduzam à derrota alguém anteriormente coroado de êxito. Colocado diante de sua própria tragédia, ele poderá chorar, lamentando seu fracasso, e afundar-se no abatimento e na revolta contra Deus; ou então ele se erguerá com uma grandeza de alma triunfal, compreendendo a beleza de seu infortúnio, já que este o aproxima mais da Divina Vítima do Calvário.
Em palavras dirigidas aos peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, assim se exprimia o hoje Papa Emérito Bento XVI: “Jesus sofre e morre na Cruz por amor. Deste modo, considerando bem, deu sentido ao nosso sofrimento, um sentido que muitos homens e mulheres de todas as épocas compreenderam e fizeram seu, experimentando uma profunda serenidade também na amargura de árduas provas físicas e morais”.8
No instante em que o homem se abraça à Cruz e a toma como um presente da munificência divina, manifesta-se todo o poder sublime e ao mesmo tempo misterioso do holocausto. Sua dor torna-se fecunda e profícua, mais eficaz na ordem da Comunhão dos Santos e na realização dos desígnios de Deus do que seus esforços naturais ou suas demais obras apostólicas. Oferecido o sacrifício, algo na alma germina, nasce e gera frutos, elevando-se diante de Deus como oblação grata e imaculada, e dando ao homem uma alegria e uma paz interior que todas as riquezas e glórias do mundo jamais poderão proporcionar-lhe.
Nos dias cheios dos imponderáveis sérios e graves da Semana Santa, acheguemo-nos aos pés da Cruz onde pende o Salvador, abandonado por quase todos — sobretudo neste século em que tantos e tantos homens só procuram o prazer e bem-estar pessoal — e coloquemos nas mãos da Mater Dolorosa, cuja alma foi transpassada pelo gládio da dor, toda a nossa entrega e disposição de padecer por Cristo e por Sua Igreja. As lágrimas de Maria purificarão nossa oferta das eventuais misérias das quais possa estar manchada e a tornarão útil para a edificação de Seu Reino e o triunfo de Seu Imaculado Coração.
1 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. l. 1, c. 8.
2 Cf. ROYO MARÍN, OP, Fr. Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, p. 324.
3 Cf. DENZINGER, H.. HÜNEMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2007, p. 328, n. 1.025.
4 HAMON, M. André-Jean-Marie. Méditations. Paris: Lecoffre, 1933, v I, p. 55-56.
5 MONTFORT, São Luís Maria de. Carta-circular aos amigos da Cruz. Cântico “O Triunfo da Cruz”. Trad. Maria Helena Montezuma Pohle. Rio de Janeiro: Santa Maria, 1954, p. 67-68.
6 Cf. CANTALAMESSA, OFMCap, Raniero. Obediencia. Trad. Ricardo M. Lázaro Barceló. 3. ed. Valencia: Edicep, 2002, p. 71. TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai-Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X. Ângelus, 01/02/2009.
7 TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai- Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X.
8 Ângelus, 01/02/2009.