A Encarnação: uma necessidade?
Como nos ensina a teologia, tudo o que Deus faz é perfeito. Mas, para entendermos com profundidade o seu agir durante a História, nos é necessário, sobretudo, por sermos criaturas racionais, alguns pressupostos que tornam mais fácil perceber a sabedoria e poder de Deus no decorrer dela. Por isso, para compreendermos acerca do mistério da Encarnação, apresentamos algumas razões dadas sabiamente pela Doutrina Católica, para assim amarmos esta importante e magnífica obra de Deus entre os homens.
Deus, por seu supremo poder, poderia perdoar o pecado do homem por um simples desejo seu, sem exigir nenhuma reparação, pois é o ofendido e não tem sobre si nenhum superior a quem deva dar conta de seus atos. Sendo o supremo Juiz, pode fazê-lo com misericórdia sem contradizer a justiça, pois aquela seria o complemento e plenitude desta. É o que ensina o Doutor Angélico:
“Se tivesse querido libertar o homem do pecado sem satisfação, não teria procedido em contra da justiça. Não pode perdoar a culpa ou a pena, respeitando a justiça, aquele juiz que está obrigado a castigar a culpa cometida contra outro, seja contra outro nome, seja contra a comunidade inteira ou contra um governante superior. Mas Deus não possui superior algum, senão que Ele mesmo é o bem supremo e comum de todo o universo. E por isso, se perdoa um pecado que tem razão de culpa porque se comete contra Ele, a ninguém faz injúria, como o homem que perdoa uma ofensa contra ele, sem que seja feita a satisfação, obra misericordiosamente, e não injustamente. E, por este motivo, Davi, quando pedia misericórdia, dizia no Sal 50, 6: Somente contra ti pequei, como se dissesse: Podes perdoar-me sem injustiça”.1
Portanto, quando Deus atua com misericórdia, não contradiz sua justiça, senão que faz algo que está por cima da justiça, por isso se diz: “A misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2, 13). Analisada sob este ponto, conclui-se que não haveria nenhuma necessidade da encarnação, uma vez que pode ser reparada por um simples ato de misericórdia. Ela foi realizada pela suprema vontade de Deus.
Conveniência da Encarnação
Ora, quando nossos primeiros pais pecaram, abriu-se entre os homens e Deus um abismo infinito, sendo impossível, por parte do homem, uma reparação de justiça estrita. Poderia Deus exigir do homem uma reparação de justiça imperfeita, ou seja, mostrando-lhe o que devia oferecer-lhe em reparação. Tampouco, nada disso satisfaria e estaria a altura da dívida. Deste modo, para salvar, em sentido de justiça estrita, esta distância infinita entre nós e Deus e pagar completamente a dívida, foi conveniente que o Homem-Deus se encarnasse.2 A encarnação do Verbo, portanto, considerada em si mesma, foi convenientíssima. Entretanto, há também outras duas razões principais, segundo Royo Marín: pela natureza mesma de Deus, pois sendo o Sumo Bem Lhe convém comunicar-se em sumo grau. Isso só poderia realizar encarnando-se e assumindo uma natureza humana.3 A segunda razão é para que Deus, realizando a encarnação, manifestasse seus atributos divinos:
a) A INFINITA BONDADE DE DEUS, que não desprezou a debilidade de nossa pobre natureza.
b) SUA INFINITA MISERICÓRDIA, já que pôde remediar nossa miséria sem necessidade de tomá-la sobre si.
c) SUA INFINITA JUSTIÇA, que exigiu até a última gota de sangue de Cristo para o resgate da humanidade pecadora.
d) SUA INFINITA SABEDORIA, que soube encontrar uma solução admirável ao difícil problema de concordar a misericórdia com a justiça.
e) SEU INFINITO PODER, já que é impossível realizar uma obra maior que a encarnação do Verbo, que juntou em uma só pessoa o finito com o infinito, que distanciam entre si infinitamente.
Querendo Deus manifestar seus divinos atributos, quer tornar-nos manifesto todo o seu amor por nós e toda sua benquerença de maneira ilimitada.4
“O Verbo se fez carne para que, assim, conhecêssemos o amor de Deus: “Nisto manifestou-se o amor de Deus por nós: Deus enviou seu Filho Único ao mundo para que vivamos por Ele” (1 Jo 4, 9). “Pois Deus amou tanto ao mundo, que deu seu Filho Único, a fim de que todo o que crer nele não pereça, mas tenha a Vida Eterna” (Jo 3, 16). O Verbo se fez carne para ser nosso modelo de santidade ﴾CCE 458 – 459﴿”.
Ele quis mostrar como é este modelo, Ele quis trazer-nos um tipo humano novo. Manifestou-Se como a suprema figura de santidade. Por isso Ele próprio afirmou: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”, e depois, “Eu e o Pai somos um, quem vê a mim vê ao Pai”. Portanto, olhando, imitando a Ele, vemos a perfeição e a santidade do Pai. Foi de fato, conveniente que Ele Se encarnasse: para podermos ter, por assim dizer, um padrão de santidade a imitar.
Manifestação de poder e bondade pela misericórdia
São Tomás e outros tomistas também afirmam que o motivo da Encarnação foi, sobretudo, um motivo de misericórdia, para salvar a humanidade caída. Ele Se encarnou com o objetivo de se dar aos pecadores. Encontramos numerosas testemunhas que dão base a esta opinião. O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo diz a São Lucas: “O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10). Também nos afirma São João: “Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3, 17). E acrescenta em sua primeira epístola: “Ele nos amou e enviou seu Filho, como propiciação de nossos pecados” (1 Jo 4, 10).
Por outra parte, o próprio nome de Jesus significa a sua missão entre nós: a de Salvador. Nosso Senhor veio como Salvador e Redentor, mais do que Rei e Profeta, se bem que seja os dois. Mas, dentro do plano do pecado, Ele veio, sobretudo, com as características de Salvador e Redentor. Fora do plano do pecado viria como Rei, Profeta, etc. Ele veio a nós enquanto vítima expiatória por nossos pecados.5
São João Crisóstomo diz belamente que, “a Encarnação não tem outra causa que esta: Deus nos viu caídos na abjeção, oprimidos pela tirania da morte e teve misericórdia”.6 Foi por causa do pecado que nós tivemos um Redentor, pois a misericórdia inclina o superior ao inferior. Ele se inclina a nós, para nos levantarmos até Ele.
Com isso, o Verbo feito carne pôde oferecer em reparação ao Pai, um ato de amor de um valor sem limites. “Assim, a misericórdia divina, longe de subordinar o Verbo encarnado a nós, é a mais alta manifestação do Poder de Deus e de sua Bondade. Canta a glória de Deus mais que todas as estrelas do firmamento”.7 A Redenção trouxe esta manifestação.
Reparação e salvação
A Encarnação era, assim, a fonte de graças mais fecunda para salvar-nos, tal como era necessário para que a reparação perfeita da ofensa fosse feita a Deus. Nenhuma intervenção divina poderia salvar-nos melhor do mal. Pela Encarnação fomos arrancados do mal e impulsionados ao bem.
Que confiança nos inspiraria o mistério da encarnação, se nos esforçássemos por estudá-lo de maneira mais profunda!…
Considerando a Encarnação por parte de Deus, que se inclina a dar-se o mais possível a nós, deve precisamente nascer em nossas almas uma confiança ilimitada não só no auxílio da graça, mas em sua própria fonte, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.
Resta-nos, enfim, considerarmos a exaltação de nossa natureza pela Redenção e estar sempre conscientes disso, com a obrigação de desprezar o rebaixamento de si mesmo pelo pecado. Como diz São Pedro: “temos entrado na posse das maiores e mais preciosas promessas, a fim de tornar-vos por este meio participantes da natureza divina, subtraindo-vos à corrupção que a concupiscência gerou no mundo” (2 Pd 1, 4).
“A encarnação do Verbo fortifica, assim, grandemente, a nossa fé, nossa esperança, nossa caridade, nos dá o exemplo de todas as virtudes e, sobretudo, é o princípio, na santíssima alma de Jesus, de um ato de amor redentor, que agrada mais a Deus que o que todos os pecados podem desagradar-lhe. […]. Verdadeiramente, podemos, com uma profunda gratidão, dizer como São Paulo: “Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, e estando nós mortos pelos nossos delitos, nos deu vida por Cristo, por cuja graça haveis sido salvos”. Essa graça é o gérmen da glória; roguemos para perseverar nela e por ela, para que verdadeiramente seja em nós a vida eterna começada”.8
1“Ille enim iudex non potest, salva iustitia, culpam sine poena dimittere, qui habet punire culpam in alium commissam, puta vel in alium hominem, vel in totam rempublicam, sive in superiorem principem. Sed Deus non habet aliquem superiorem, sed ipse supremum et commune bonum totius universi. et ideo, si dimittat peccatum, quod habet rationem culpae, ex eo quod contra ipsum committitur, nulli facit iniuriam; sicut quicumque homo remittit offensam in se commissam absque satisfactione, misericorditer et non iniuste agit. et ideo David, misericordiam petens, dicebat (ps.L, 6): Tibi soli peccavi: quase dicat: Potes sine iniustitia mihi dimittere” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiae. III, q. 46, a. 2. ad 3. Tradução de Alexandre Correia).
2Cf. ROYO MARÍN, Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Op. cit. p. 30.
3Ibid. p. 25-26.
4“a) LA INFINITA BONDAD DE DIOS, que no despreció la debilidad de nuestra pobre naturaleza humana. b) SU INFINITA MISERICORDIA, ya que pudo remediar nuestra miseria sin necesidad de tomarla sobre sí. c) SU INFINITA JUSTICIA, que exigió hasta la última gota de la sangre de Cristo para el rescate de la humanidad pecadora. d) SU INFINITA SABIDURÍA, que supo encontrar una solución admirable al difícil problema de concordar la misericordia con la justicia. e) SU INFINITO PODER, ya que es imposible realizar una obra mayor que la encarnación del Verbo, que juntó en una sola persona lo finito con lo infinito, que distan entre sí infinitamente” (Ibid. p. 26. Tradução da autora).
5GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. El Salvador y su amor por nosotros. Trad. José Antonio Millán. Madrid: Rialp, 1977. p. 174.
6SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O Filho de Deus se fez Homem: Curso de Formação. São Paulo: 21 ago. 2002. (Arquivo IFTE).
7“Así, la misericordia divina, lejos de subordinar el Verbo encarnado a nosotros, es la más alta manifestación del Poder de Dios y de su Bondad. Canta la gloria de Dios más que todas las estrellas del firmamento” (GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. Op. cit. p. 179).
8“La encarnación del Verbo fortifica, así, grandemente, nuestra fe, nuestra esperanza, nuestra caridad, nos da el ejemplo de todas las virtudes y, sobre todo, es el principio, en la santísima alma de Jesús, de un acto de amor redentor que agrada más a Dios que lo que todos los pecados pueden desagradarle. […] Verdaderamente, podemos, con una profunda gratitud, decir como San Pablo: ‘Pero Dios, que es rico en misericordia, por el gran amor con que nos amó, y estando nosotros muertes por nuestros delitos, nos dio vida por Cristo, por cuya gracia habéis sido salvados’. Esta gracia es el germen de la gloria; roguemos para perseverar en ella y por ella, para verdaderamente sea en nosotros la vida eterna comenzada” (Ibid. p. 170).