Cápua: preciosa lição de vida espiritual
Irmã Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP
Quem era o contendor que ousava opor resistência ao glorioso avanço das legiões romanas, levando sua audácia ao extremo de desafiá-las no coração de seu poderio? Quem era este que, num golpe estratégico magistral, se aventurara a frear a colossal força de Roma e agora a mantinha numa humilhante incerteza?
Aníbal e a campanha contra Roma
Havia já muitos anos, uma rivalidade surgira entre as duas potências da Antigüidade: Roma e Cartago. Não poupara a primeira, em seu ímpeto conquistador, os territórios da segunda situados nas ilhas de Sicília, Córsega e Sardenha, ocasionando a Primeira Guerra Púnica. Se Roma havia conseguido ampliar suas fronteiras, comprara ao mesmo tempo uma inimiga irreconciliável que nutria um profundo desejo de vingança.
Em Cartago, entre os mais acirrados na oposição a Roma, achava-se a dinastia dos Barca, cujo chefe, Amílcar, distinguira-se por sua coragem e determinação ao longo das campanhas militares na Península Ibérica. Conta a tradição que ele obrigou seu filho Aníbal, de nove anos, a jurar diante dos altares dos deuses ódio eterno aos romanos.
Pode-se dizer que a partir daí a vida de Aníbal não foi mais que o estrito cumprimento de sua promessa. Educado por seu pai nas rudes façanhas da guerra na Hispânia, o jovem descendente dos Barca reunia predicados aparentemente contraditórios: sabia aliar a astúcia à energia, o maior dos entusiasmos a um cálculo frio e sagaz; era ao mesmo tempo o melhor dos peões e o mais hábil dos cavaleiros, o primeiro no ataque e o último na retirada.
Após a morte de seu pai e de seu cunhado, o exército cartaginês o elegeu general quando tinha apenas vinte e um anos. Aníbal revelou-se um excelente estrategista, demonstrou logo seu gênio improvisador nos combates e realizou verdadeiras proezas. Rompendo a trégua temporária que havia entre Cartago e Roma, atacou várias cidades pertencentes a esta na Hispânia, saindo sempre vencedor.
Em 218 decidiu pôr em prática o sonho temerário de tomar Roma e destruir por completo sua primazia. Os romanos conheciam as intenções do jovem general e o esperavam no marcom uma numerosa frota; entretanto Aníbal, temendo ser derrotado numa batalha naval onde a superioridade de seus inimigos era patente, preferiu levar suas tropas por terra através da Hispânia e da Gália. Reuniu um exército de 100 mil guerreiros com 37 elefantes, transpôs o Ródano, os Pirineus e os Alpes, estes últimos cobertos de neve e cheios de perigos e obstáculos. Grande parte dos soldados pereceu ao longo da viagem, mas o general não se intimidou, e recrutou gauleses para reparar as perdas sofridas.
Seu avanço militar pela Itália foi marcado por uma série de êxitos extraordinários. Chegando a Ticino, venceu o cônsul Cornélio Cipião e pouco mais tarde, em Trébia, infringiu uma vergonhosa derrota à legião comandada por Semprônio. No ano seguinte, obteve nova vitória às margens do lago Trasímeno, contra as forças lideradas pelo cônsul Flamínio. Com a chegada da notícia dessa batalha, o terror espalhou-se em Roma. Quinto Fábio Máximo, eleito ditador, pôs a cidade em estado de defesa e reuniu às pressas um novo contingente com o intuito de conservar ao menos a capital.
Não obstante essas medidas de prudência tomadas por Fábio Máximo, o general púnico conseguiu atrair os cônsules Terêncio Varrão e Paulo Emílio a uma batalha em Cannas, em campo aberto, como era bem do seu gosto, pois sempre vencia nesse tipo de combate. Aníbal dispôs seus africanos, gauleses e íberos em ordem de batalha, armados de longas espadas e afiados alfanjes. A luta foi encarniçada. De ambos os lados, os guerreiros combateram heroicamente, mas Aníbal, apesar da inferioridade numérica de seu exército, saiu vencedor. Como afirmamos acima, Roma sofreu aí a pior derrota da história da República e viu cair sob os golpes dos cartagineses a fina flor de sua força combatente.
O exército cartaginês se detém em Cápua
Após a batalha de Cannas, muitos contemporâneos pensaram que Roma chegara ao fim de sua glória, e alguns de seus aliados italianos, julgando- a perdida, decidiram unir-se a Cartago. A queda da capital parecia uma conseqüência natural do avanço cartaginês.
Entretanto, deu-se o inesperado: ao invés de lançar-se sobre a cidade no momento em que ela se achava indefesa e sem coordenação militar, Aníbal preferiu retirar-se para Cápua (uma das cidades que lhe haviam aberto as portas) a fim de ali passar o inverno e conceder um merecido descanso às suas tropas. Sem dar ouvidos às sugestões de seus oficiais, de logo invadir Roma, e aos acertados avisos de seu lugar-tenente Maarbal que lhe dizia: “Tu sabes vencer, Aníbal, mas não aproveitar da vitória”, ele deixou-se ficar em Cápua, gozando de uma vida ociosa e devassa. Seus soldados, que estavam no auge do furor bélico, ficaram de repente sem motivação por verem o próprio chefe abandonar seus objetivos para dedicar- se ao descanso, e entregaram-se aos prazeres de uma vida fácil, a ponto de, entre os romanos, dizer-se que eles “tendo entrado homens, saíram transformados em mulheres”.
Era o toque de finados do sonho cartaginês: Aníbal cometera um erro irreparável. Ao facilitar o repouso e o relaxamento de seus valentes, concedendo-lhes tudo quanto quisessem, julgava que eles adquiririam assim um redobrado vigor para se jogarem de novo sobre o adversário. Entretanto, o resultado foi precisamente o contrário: de tanto descansar no meio dos prazeres, eles amoleceram e perderam o desejo de vencer. A inação dos cartagineses em Cápua deu aos romanos oportunidade de reagrupar suas forças e iniciar uma hábil contra-ofensiva, hostilizando a retaguarda africana e cortando-lhe o aprovisionamento. Aníbal jamais chegaria a entrar em Roma.
Profunda lição de vida espiritual
Após ter cruzado toda a Península Ibérica, transposto os Alpes e enfrentado vitoriosamente os poderosos exércitos romanos, o enérgico general africano sucumbiu em Cápua. O que, exatamente, teria acontecido?
“Finis coronat opus” (o fim coroa a obra), diz o provérbio latino. Aníbal confiou demais nas suas próprias forças e já deu a vitória por obtida quando pouco lhe faltava para alcançar o termo final. Sem ter atingido o seu objetivo último, todas as suas lutas anteriores ficaram tremendamente destituídas de brilho e até mesmo, de certo modo, sem sentido.
Ele foi um excelente general, astuto e ao mesmo tempo ousado. No entanto, no momento mais dramático de sua grandiosa campanha militar, faltou-lhe praticar a virtude que dispõe a razão a discernir em qualquer circunstância nosso bem, e a escolher os meios adequados para realizá-lo: a prudência.
“O homem prudente vigia seus passos” (Pr 14,15), afirma a Sagrada Escritura. São Tomás, citando Aristóteles, ensina que a prudência é a “regra certa da ação” 1 . Ela é chamada “auriga virtutum” (o cocheiro, ou o portador, das virtudes), porque conduz as outras virtudes, indicando-lhes a regra e a medida. Graças à prudência, aplicamos sem erro os princípios morais aos casos particulares e superamos as dúvidas sobre o bem a fazer e o mal a evitar 2 .
Onde falhou Aníbal? Tivesse ele sido prudente, teria considerado quanto risco havia em entregarem-se, ele e seus soldados, aos devaneios das paixões que Cápua oferecia, desviando-se assim de primordial, a conquista de Roma. A ele — que era pagão e desconhecia os salutares preceitos da moral cristã — teriam bastado os ensinamentos de Aristóteles, o qual previne os imprudentes contra o risco dos prazeres desregrados: “O deleitável e o triste pervertem no coração o conceito da prudência” 3 .
Mas o Cristianismo vai muito além. Na Suma, o grande São Tomás disserta sobre a prudência de modo completo e profundo. E é muito claro ao afirmar que ela se perde, não tanto por distrações ou esquecimentos, mas, sobretudo, quando é enleada pelas paixões: “A prudência não desaparece diretamente pelo esquecimento. Ela, ao invés, corrompe-se pelas paixões” 4 .
Deste fato histórico passado na antiqüíssima cidade itálica tiramos, sem dúvida, uma preciosa lição. Ele é útil tanto para quem adotou o estado religioso quanto para os cristãos que vivem na sociedade. A entrega a um vício, a uma paixão, por pequena, fugaz e sem importância que pareça, é sempre uma imprudência que pode arruinar anos de uma bem-levada vida devota. Pode destruir uma empresa, um casamento ou uma família, uma juventude brilhante ou uma respeitável maturidade. Quantas “Cápuas” não terão destituído da coroa da dignidade pessoas que passaram uma existência inteira na observância dos melhores preceitos morais, levando-as até a terem vergonha de si mesmas?
O exemplo da derrota do infeliz Aníbal e, sobretudo, os sábios ensinamentos da Santa Igreja, são um sério e irrecusável convite a todos nós, no sentido de nunca fraquejarmos na prudente vigilância e no combate às más paixões. Além disso, nunca será demais recordar que nenhuma virtude pode ser estavelmente praticada sem o precioso auxílio da graça. Mas esta jamais será recusada àqueles que a pedem com insistência e confiança, sobretudo quando pela intercessão de Maria Santíssima. Sejamos prudentes e confiantes, e não haverá “Cápua” a nos desviar do caminho da eterna salvação.
1) Suma Teológica II-II, q. 47, a. 2.
2) Cf. CIC n. 1806.
3) In VI Ethic.
4) Suma Teológica, II-II q. 47, a. 16.
Never would have thought I would find this so indispensable.