Os homens são filhos de Deus?
Ir. Juliane Campos, EP
Conforme explica o padre Royo Marín, “toda verdadeira filiação ― seja de que ordem for ― consiste em receber, por via de geração natural, a vida e a natureza específica do próprio pai. Não há outro procedimento possível para estabelecer a relação pai-filho ― falando propriamente e em sentido estrito ― que a via de causalidade geradora”.1
É a graça que dá ao ser humano a condição de filho de Deus. Desde o princípio Deus elevou o homem à ordem sobrenatural, constituindo-o fundamentalmente pela graça e justiça original, sem que jamais haja existido para o homem um estado de simples natureza. Desde o primeiro instante de sua existência, nosso primeiro pai, Adão, “recebeu de Deus a santidade e a justiça” (D 788) , ou seja, foi criado no estado de graça santificante. Eis o que expressa o Concílio Vaticano I: “Deus, por sua infinita bondade, ‘ordenou o homem a um fim sobrenatural’, isto é, a participar dos bens divinos que sobrepujam totalmente a inteligência da mente humana, pois, em verdade, ‘nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem o coração do homem provou o que Deus preparou para os que O amam’ (1 Cor 2,9; Can. 2 e 3)” (D 1786) .
De maneira clara e simples pode-se dizer, então, que a graça é, pois, um dom divino, que Deus infunde na alma humana, dando-lhe uma participação na Sua própria natureza divina, fazendo o homem semelhante a Ele em sua própria divindade. O que quer dizer, tornando-o filho, por esta participação em Sua própria natureza. Divinizando a cada um, com d minúsculo.
Um exemplo muito elucidativo, baseado em São Boaventura e apresentado em uma conferência pelo Mons. João Clá Dias, faz compreender bem o que seria a natureza em estado puro ou tomada pela graça: seria o de uma catedral, cheia de vitrais, mas à meia-noite e sem nenhuma iluminação. Tudo escuro. Entra-se às apalpadelas e vão se acostumando as vistas. Consegue-se divisar um pequeno ponto de luz vermelha bruxuleando ao fundo, e é a pequena lamparina do Santíssimo, única e tênue iluminação visível. Passa-se o tempo, começa a amanhecer o dia e a iluminar-se os vitrais.
“Chega uma certa hora em que o sol bate forte nos vitrais e aquela luz toda se estende pelo chão com cores e mais cores. É uma feeria que eleva a alma e fica-se extasiado por ver os magníficos vitrais iluminados pelo sol. O que é o vitral à meia-noite? É a alma humana sem a graça. O vitral banhado pelo sol é a alma banhada pela graça. É o vitral que, sem ser luz, passa a iluminar, pela luz do sol que ele incorpora. Assim é a alma humana que, sem ser Deus, incorpora a vida divina em si mesma e vê as coisas, as compreende de dentro da vida de Deus, pela graça“.2
Mas o homem, infelizmente, não ficou fiel às exigências que lhe foram impostas por esta elevação gratuita à ordem sobrenatural. O homem transgrediu o mandamento de Deus e pecou. Esclarece Royo Marín que “pelo pecado original, nossos primeiros pais perderam, para si e para todos os seus descendentes, o imenso tesouro sobrenatural que haviam recebido de Deus, e que teriam herdado todos os seus filhos, se não o perdessem irremediavelmente pelo pecado”. 3
Todas as graças, virtudes e dons que havia recebido de Deus ficaram perdidos. A filiação divina ficou maculada, pois não pode um filho de Deus, no sentido mais exato do termo, desobedecer às leis prescritas por Ele mesmo. Ficou manchada toda a criação humana.
O Concílio de Trento definiu assim esta doutrina:
“Se alguém não acredita que o primeiro homem, Adão, ao transgredir o mandamento de Deus no Paraíso, perdeu imediatamente a santidade e justiça em que havia sido constituído (…), seja anátema (D 788).
Se alguém afirma que a prevaricação de Adão só prejudicou a ele, e não à sua descendência; ou que a santidade e justiça recebida de Deus, perdida por ele, perdeu-a só para si, e não também para todos nós; ou ainda que, manchado ele pelo pecado da desobediência, transmitiu ao gênero humano somente a morte e as penas do corpo, mas não o pecado, que é a morte da alma, seja anátema, pois contradiz o Apóstolo que declara: ‘Por um só homem entrou o pecado no mundo, e, pelo pecado, a morte, porquanto todos pecaram’”. (Rom 5,12) (D 789)
O Pecado Original trouxe conseqüências desastrosas para a humanidade. O homem ficou com sua natureza desordenada, com suas paixões desenfreadas, com um egoísmo desmedido e ficou capaz de cometer muitos outros atos maus, ou seja, outros pecados pessoais.
Define-se, pois, o pecado, segundo a Suma Teológica:
O pecado, segundo foi dito, é o ato humano mau. Um ato é humano desde que seja voluntário, ou de modo elícito, como o querer e o escolher; ou de maneira imperada, como os atos exteriores da palavra ou da ação. Um ato humano é mau porque lhe falta a devida medida. Toda medida de uma coisa se toma por comparação a uma regra, da qual, se ela se afasta, será sem medida. Para a vontade humana há duas regras. Uma, bem próxima e homogênea, que é a própria razão humana. A outra, que serve de regra suprema, é a lei eterna, de certo modo a razão de Deus. Eis porque Agostinho afirmou duas coisas na definição de pecado. Uma diz respeito à substância do ato humano, e é por assim dizer o material no pecado, ao dizer: ‘dito, feito, desejado’. A outra refere-se à razão de mal, e é por assim dizer o formal no pecado ao dizer: ‘contra a lei eterna’.4
O pecado é, portanto, a violação consciente e voluntária da lei da razão, da consciência e da lei de Deus.
Perdida a vida divina sobrenatural com o pecado, o homem ficou reduzido às suas próprias forças, que de si mesmas jamais poderiam reparar a catástrofe produzida pelo pecado original ou por seus pecados pessoais, pelo abismo infinito que existe entre Deus e o homem. Era impossível cobrir esta distância pelas potências humanas, tão debilitadas pelas consequências do pecado.
Assim como a graça foi dada gratuitamente por Deus, também a reparação do pecado o foi. Diz o Apóstolo Paulo, revelando o grande mistério de nossa redenção e reconciliação com o Criador:
Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, estando nós mortos por nossos delitos, deu-nos a vida por Cristo – gratuitamente fomos salvos – e nos ressuscitou e deu-nos assento nos céus em Cristo Jesus, a fim de mostrar nos séculos vindouros a excelsa riqueza de sua graça por sua bondade para conosco em Cristo Jesus. Pois gratuitamente fostes salvos pela fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus (Ef 2,4-8).
Desse modo, Cristo passou a ser, depois do pecado, a única fonte da vida sobrenatural, portanto da graça. Esclarece ainda Royo Marín que “Não se concedeu, nem se concederá jamais ao gênero humano uma só graça sobrenatural a não ser por Cristo ou em atenção a Ele, pois de ‘sua plenitude recebemos, todos, graça sobre graça’ (Jo 1,16). O mesmo Cristo manifestou expressamente, com inefável amor e misericórdia, que viera ao mundo ‘para que os homens tenham vida, e a tenham em abundância’(Jo 10,10)”.5
Com a redenção, o homem não só pôde seguir sendo filho de Deus, através do batismo, recuperando a graça perdida com o pecado, mas tornou-se ainda mais semelhante a Ele na irmandade com Jesus Cristo encarnado.
1ROYO MARÍN, Antonio. Teología de la Salvación. 4. ed. Madrid : B.A.C., 1997. p. 3
2CLÁ DIAS, João S. Conferência. São Paulo, 25 nov. 1996.
3ROYO MARÍN, António. Op. cit. p. 10
4SÃO TOMÁS DE AQUINO. S.Th. I-II, q.71, a.6
5ROYO MARÍN, António. Op. cit. p. 11.
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