A força do olhar

Felipe_ II EspanhaBeatriz Alves dos Santos

Conta-se que o rei Filipe II, da Espanha, ao visitar o magnífico edifício do Escorial que havia mandado construir, deparou-se com uma coluna no centro de uma das salas que não havia planejado colocar. Ordenou, então, que se chamasse o arquiteto responsável e lhe interrogou a respeito. Rindo-se do que havia feito, o chefe de construção deu um golpe na coluna e esta se desfez: a pilastra era falsa. O rei olhou-o seriamente, repreendendo-o com esse olhar, e retirou-se sem proferir uma só palavra. Alguns dias mais tarde, o arquiteto morreu de desgosto.

Diante de tal fato, poderíamos perguntar: que força há no olhar humano capaz de mudar a vida de um homem? Há pessoas que têm o dom de elevar e encantar; outras, o poder de desnortear, ou até mesmo de atemorizar pelo simples fato de olhar. Não é, pois, verdade que um olhar de reprovação, vindo de alguém a quem se ama, dói mais do que um castigo físico? De onde procede, então, esse misterioso poder do olhar?

Consideremos a hierarquia do corpo humano: a cabeça é o membro mais nobre, pois aí se reúnem os principais sentidos. Todas as funções vitais são comandadas pelo cérebro, e este emite mensagens para os membros inferiores, a fim de que cada qual cumpra com a sua função.

No reino vegetal, entretanto, está “a parte superior voltada para o que é mais baixo do mundo, pois as raízes correspondem à boca […]. Os animais, por sua vez, se acham numa situação intermediária, pois a parte superior do animal é aquela pela qual recebe comida”1; o homem, porém, tem o cérebro na parte mais elevada.

Ao homem, os sentidos foram dados com vistas ao conhecimento e à contemplação. Por essa razão, têm o tronco ereto para que, valendo-se dos sentidos, e principalmente da visão, que é “o mais sutil e o que mostra mais diferença nas coisas”2, possam conhecer todo o sensível, tanto do firmamento, como da Terra.

Diversamente dos homens, o animal possui os sentidos visando simplesmente a sua própria sustentação e defesa. Por isso, tem o focinho inclinado para a terra, como para buscar alimento e prover-se do necessário para viver3.

Se a visão é o sentido que mais permite receber novos conhecimentos das coisas, das pessoas, das circunstâncias, e o que vai atrás do chamativo e curioso, podemos, então, afirmar que este é o “mais nobre dos sentidos”4.

Ora, se todo conhecimento exterior, segundo São Tomás, que se fixou no intelecto passou antes pelos sentidos, sendo estes imprescindíveis no processo do conhecimento, a visão tem primazia na ordem do conhecimento.

Analisando o belo e o bem, e a percepção dos mesmos, “são a vista e a audição os sentidos superiores, por satisfazerem a razão”:

“O belo é idêntico ao bem mas possui uma diferença de razão. De fato, sendo o bem o que todos desejam, é de sua razão acalmar o apetite. Ao passo que é da razão do belo acalmar o apetite com sua vista ou conhecimento. Por isso referem-se principalmente ao belo os sentidos mais cognoscitivos, a saber, a vista e a audição, que servem à razão. Assim, dizemos, belas vistas e belos sons. […] Aos outros sentidos não usamos a palavra beleza; pois não dizemos belos sabores nem belos odores”5.

Ora, se através do olhar, o mundo exterior pode penetrar no interior do homem, em sentido inverso, é também por meio do olhar que melhor se pode conhecer o que se passa no interior de cada pessoa, como afirma Cornélio a Lápide, nos comentários aos versículos 26 e 27 do capítulo 19 do Eclesiástico:

Pelo semblante se conhece a pessoa; pelos traços do rosto, a pessoa sensata. A roupa da pessoa, o seu sorriso e o jeito de andar, tudo revela de quem se trata. Assim como se conhece uma pessoa pelo seu modo de ser, também se conhece o segredo da alma de uma pessoa pela sua face. […] A face, portanto, é a imagem do coração, e os olhos são o espelho da alma e de suas afeições. […] assim, a face e os olhos indicam alegria ou tristeza da alma, seu amor ou seu ódio; como também a honestidade ou deslealdade e hipocrisia6.

Crucifixo1Por de trás do olhar humano revela-se uma gama de sentimentos ocultos, quer seja no brilho inocente dos olhos de uma criança, na experiência da vida que se reflete nas pálpebras enrugadas de alguém no declínio de sua existência, ou ainda no olhar de um criminoso, o qual parece acusar suas más intenções. Esse é um vastíssimo e riquíssimo universo, que continuamente proclama a própria existência através de suas várias manifestações, e “a alma humana, é um dos mais eloquentes reflexos do Criador”7.

Afirma Monsenhor João Clá: “o olhar é a alma da fisionomia, de maneira que as demais expressões do rosto e até o timbre de voz são apenas um reflexo do olhar”8. Compreendendo isso, fica patente a procedência da força e atração do olhar, pois à maneira de uma janela que se abre para ver o interior de um recinto, a alma faz-se ver desde os olhos.

Compreendendo a estreita união entre a alma e o olhar, entende-se a capacidade de atração de algumas fisionomias, cujo olhar denota inocência, sacralidade e elevação; e, em sentido oposto, a penumbra espiritual que transparece de modo inevitável nos indivíduos fora da graça de Deus…

1“Plantae vero habent superius sui versus inferius mundi (nam radices sunt ori proportionales), […]. Animalia vero bruta medio modo: nam superius animalis est pars qua accipit alimentum (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op. cit.. I-II, q.91, a.3. Tradução de Aldo Vannucchi et al.).
2“[…] qui es subtilior et plures diffrentias rerum ostendit” (Ibid. I, q.91, a.3, ad. 3. Trad. Aldo Vannucchi et al.).
3 Ibid. q.91, a.4.
4CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Prefácio. In: CAVALCANTI, Lamartine de Holanda. Psicologia geral, sob enfoque tomista. São Paulo: Sedes Sapientiae, 2009. p. 10.
5“Pulchrum est idem Bono, sola ratione differens. Cum enim bonum sit quod omnia appetunt, de ratione boni est quod in eo quietetur appetitus: sed ad rationem pulchri pertinet quod in eius aspectu seu cognitione quietetur appetitus. Unde et illi sensus praecipue respiciunt pulchrum, qui máxime cognoscitivi sunt, scilicet visus et auditus rationi deservientes: dicimus enim pulchra visibilia et pulchros sonos. […] Aliorum sensuum, non utimur nomine pulchritudinis: non enim dicimus pulchros sapores aut odores” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op.cit. I-II, q.27, a.1, ad. 3. Trad. Aldo Vannucchi et al.).]
6 CORNELIUS A LAPIDE, apud CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Prefácio. In: CAVALCANTI, Lamartine de Holanda. Op. cit. p. 12.
8 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O olhar de Jesus: Conferência. São Paulo: s.n, 1986.

3 responses to “A força do olhar”

  1. Andrés Louzao LLLoreda disse:

    Felicitaciones por su artículo.

    Una pregunta: ¿Me podría enviar una copia digital de la foto de Felipe II?

    Muchísimas gracias,

    ¡Salve María!

  2. Pio Quimas de Oliveira disse:

    Exelente artigo.
    Quando entrelaçados por um vínculo de amor, duas pessoas comunicam-se perfeitamente entre olhares.
    Não só num momento de repreensão, mas também numa hora de aprovação.
    Esta afinidade de almas é característica dos que se querem bem, por isto está cercada desta aurea mistica.
    Por isto um pai se compraz tanto ao trocar olhares com sua filha e ver através deste a Luz de Deus.
    Salve Maria !

  3. Patricia disse:

    Salve Maria!
    Não foi um olhar de Nosso Senhor que operou a conversão de São Pedro?
    Um olhar nos diz muito. Quanto nos alegra aqueles olhares que nos “cingem até os rins”? que nos penetra até o fundo da alma, que nos desconserta ou concerta…
    “Mira la mirada…”

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