Não basta união, é preciso unidade
Fahima Akram Salah Spielmann
Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não der fruto em mim, Ele o cortará; e podará todo o que der fruto, para que produza mais fruto. Vós já estais puros pela palavra que vos tenho anunciado. Permanecei em Mim e eu permanecerei em vós. O ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós: não podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em Mim. Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanecer em Mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim será lançado fora, como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á. Se permanecerdes em Mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai, para que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos. Como o Pai me ama, assim também Eu vos amo. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, sereis constantes no meu amor, como também eu guardei os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor. Disse-vos essas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa. (Jo 15, 1-11. Grifo da autora).
Vendo Nosso Redentor nos impelir insistentemente a permanecermos n’Ele, perguntamo-nos qual seria o motivo de tamanho desejo de incorporação?
Explica-nos o admirável Padre Garrigou-Lagrange 1que, nessa metáfora, Cristo quis deixar expresso que o único meio de comunicação da seiva, ou do influxo da vida da graça, nos vem unicamente d’Ele, asssim como a cabeça é a única que tem a potência de comunicar aos membros o influxo vital. Separar-se d’Ele é sujeitar-se à morte.
De fato, encontramos quarenta vezes o verbo “permanecer” no Evangelho do discípulo amado e vinte e três em sua primeira epístola, sempre assinalando a nossa obrigação de procurarmos a mais íntima união com Cristo.
A esse respeito, em discussão contra os pelagianos, o II Concílio de Milevitano e o Cartaginense de 418 assinalaram a absoluta dependência que possuem os cristãos em relação a Cristo, uma vez que Ele não disse “sem mim pouco podeis fazer”, mas sim “nada podeis fazer”; ou seja, desde os membros em potência até os que os são em ato, se esfriarem nas suas relações com a Cabeça, afrouxando os vínculos de união, a consequência só poderá ser uma: a infrutuosidade (D 227).
Ademais, Cristo nos atesta que não basta “fazer com”, mas é necessário permanecer n’Ele, com Ele e por Ele, para produzir realmente frutos. É o inovador princípio de íntima união trazida por Jesus, que não deve se abranger, mas sim transformar em unidade.
Como nos atesta a teologia, todos os cristãos “têm de aspirar a uma presença íntima; presença que se realiza mediante a graça, que é a seiva que os vivifica sobrenaturalmente”,2 e que os faz produzir bons frutos de santidade.
E a força e a plenitude dessa permanência, assegura Monsenhor João, somente encontraremos no amor.3
Cristo prossegue com uma increpante sentença àqueles que optarem por desligar-se da Cabeça, pois, além de perderem a vida, terão o seu castigo: “se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, como o ramo. Ele secará, e hão de ajuntá-lo e o lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á” (Jo 15, 6).
Além dessa significativa analogia, em outras duas ocasiões, encontramos o Evangelista usar uma imagem, que se não fosse da autoria de Cristo não nos seria creditada, que é a união de Cristo com a sua Igreja sob a entranhada imagem da unidade entre as Pessoas da Santíssima Trindade.4
Em uma primeira circunstância, temos o Divino Mestre ensinando o modo pelo qual, ainda nessa vida terrena, podemos levar essa união ao seu auge: “O que come minha carne, e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele. Assim como o Pai que vive me enviou, e Eu vivo pelo Pai, assim o que me comer a Mim, esse mesmo também viverá por Mim, e de minha própria vida” (Jo 6, 55-58).
Contudo, ainda que a comunhão seja sob as espécies físicas, é através da graça, a qual usa de instrumento as espécies, que obtemos a nossa incorporação a Cristo, e assim se torna possível, mesmo depois de consumida a Eucaristia, dizer que quem come a carne de Cristo permanece n’Ele, e Ele na pessoa.
Nesse sentido, entendemos o que dizia São Paulo ao advertir alguns cristãos que participavam da Eucaristia: “Porventura o cálice da bênção, que nós benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão que partimos não é a participação do corpo de Cristo? Visto que há um só pão, nós, embora muitos, formamos um só corpo, porque participamos todos dum só e mesmo pão” (1Cor 10, 16-17).
Por esse motivo, ousam os teólogos afirmarem que o principal efeito da Eucaristia é a unitas Corporis Mystici,5 ou seja, a união da Cabeça com o corpo.
Noutra passagem, no momento solene antes de consumir seu holocausto, sabendo Jesus que deixaria os seus, quis pedir ao Pai, compondo a emocionante oração sacerdotal, rogando para seus membros máxima união à semelhança entre Eles, a ponto de se transformar em unidade: “que eles sejam todos um, como Tu, Pai, o és em Mim e Eu em Ti, para que também eles sejam um em Nós […],que sejam um, como Nós somos um: Eu neles e Tu em Mim, para que sejam consumados na unidade” (Jo 17, 20-23. Grifos da autora).
Sabemos que a união entre o Pai e o Filho é substancial. São os dois uma única essência, sem deixar, ao mesmo tempo, de haver distinção pessoal. Sao Pessoas sempre unidas entre si, de maneira que onde está uma Pessoa, aí também está a outra.
Do mesmo, modo através da graça, Cristo está em nós como Ele está no Pai, ainda que seja de maneira acidental e não substancial como na Santíssima Trindade. E, assim como a união entre as Divinas Pessoas não destrói sua natureza, a nossa união com Cristo não destrói a nossa personalidade, mas a enaltece.6
Enumerar as passagens onde Cristo manifesta seu desejo de união, poderíamos deixar para uma outra oportunidade; entretanto, podemos entrever que, da parte da Cabeça, não há outro anseio do que a mais perfeita união com os seus membros, baixando de sua alta dignidade e se identificando com eles (Cf. Mt 25, 45; At 9, 5).
Com base nisso, podemos entender o que nos dizia o Apóstolo “não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20), pois no cristão passa a existir uma autêntica vivência de Cristo, a ponto de haver “mais semelhança entre o cristão e Cristo, do que entre o cristão e Deus”.7
Há, portanto, em Cristo o desejo de unir-se a seu Corpo da forma mais íntima possível, e apesar de haver vários membros, quer Ele que formemos uma só unidade. O problema está em sermos membros flexíveis, unidos por Ele, com Ele e n’Ele, para, dessa forma, alcançarmos a plenitude do Corpo.
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[1] GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. Op. cit. p. 142-145.
[2] “[cristianos] han de aspirar a una presencia íntima; presencia que se realiza mediante la gracia, que es la savia que los vivifica sobrenaturalmente” (SAURAS, Emilio. Op. cit. p. 55. Tradução da autora).
[3] CLÁ DIAS, João Scognamiglio. A Igreja é uma, Santa, Católica e Apostólica. Op. cit.
[4] Deve-se advertir que o sentido, ainda que seja próprio, é usado de forma análoga.
[5] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiae. III q. 73, a. 3, ad1.
[6] SAURAS. Emilio. Op. cit. p. 52.
[7] “Más semejanza hay entre el cristiano y Cristo que entre el cristiano y Deus” (SAURAS, Emilio. Op. cit. p. 191. Tradução da autora).