Jesus e Maria: um só Coração
Irmã Carmela Werner Ferreira,EP
E continuava: “Ficai sabendo que não foi por todos os homens que Cristo morreu, mas apenas por aqueles que Ele quis salvar, aqueles aos quais deu forças para não praticar mal algum. Vede o crucifixo: é uma expressão errada do Senhor, porque Ele na realidade não tem os braços abertos para toda a humanidade. Temei pelos vossos pecados! Eles podem vos afastar irremediavelmente da face de Deus!”
Após o sermão, os fiéis se retiraram um pouco assustados. Custava-lhes acreditar em um Deus indiferente a uma parte das suas criaturas, que já estavam previamente condenadas, e sendo para as demais um terrível Juiz. Mas se o padre assim falava, assim devia ser…
Aos poucos, a devoção eucarística ia diminuindo, assim como a freqüência às confissões, porque — pensavam — de nada lhes serviria o sacramento sem uma perfeita e quase inalcançável contrição.
Dentro dessa perspectiva rígida e severa, também o amor à Mãe de Deus foi perdendo intensidade e as orações em sua honra foram se extinguindo nos lábios dos fiéis.
Falsa concepção da justiça divina: o jansenismo
O eclesiástico que assim pregava era seguidor do tristemente famoso Cornélio Jansênio, bispo da cidade belga de Ypres. Sua doutrina, condenada pela Santa Sé após a sua morte, foi refutada por muitos santos. Entretanto, seus ensinamentos lançaram profundas raízes na sociedade daquela época, sobretudo na França, Bélgica e Holanda.
O jansenismo, juntamente com outros erros surgidos no mesmo período, foi um duro golpe nas cordas mais delicadas do amor a Deus. Somando-se aos fatores de degenerescência que fermentavam no século XVII, logrou arrancar de um imenso número de almas cristãs o fio de ouro preciosíssimo que as mantém ligadas a Deus nas tribulações da vida: a confiança no perdão e na misericórdia do Salvador e a devoção a Nossa Senhora.
A misericordiosa resposta da Providência
Em seus desígnios insondáveis e sapienciais, a Divina Providência nunca deixa de tirar dos grandes males bens ainda maiores. A História nos demonstra que a resposta dada pelos Céus às investidas infernais solidifica, explicita e faz progredir a obra de Deus. Daí a famosa expressão de São Paulo: “Oportet hæreses esse” — é preciso haver heresias, para que se possam reconhecer os fiéis (1 Cor 11, 19).
Contra os erros difundidos no séc. XVII, o revide divino marcou para sempre a fisionomia sagrada da Santa Igreja com a expressão mais terna e eloqüente da bondade do Senhor e de sua Mãe Santíssima: o mundo recebeu a revelação da devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria.
O Coração de Jesus e Maria
Como os primeiros raios da aurora vêm anunciando a chegada do astro-rei, a grande revelação feita por Jesus a Santa Margarida Maria foi preparada, desde os primórdios daquele século, por um surto de devoção a este Coração divino. Uma plêiade de almas fervorosas espalhou esta prática admirável, dentre as quais destacou-se São João Eudes.
Este varão verdadeiramente evangelizador, que consagrou sua vida inteira às missões e à formação dos sacerdotes na França, teve uma devoção fecundíssima aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria.
Impelido por um invulgar sopro da graça, explicitou com unção e sabedoria a ousada devoção que une num só os Sacratíssimos Corações do Redentor e de sua Mãe:
“Não sabeis que Maria nada é, nada tem e nada pode sem Jesus, por Jesus e em Jesus, e que Jesus é tudo, pode tudo e faz tudo n’Ela? Não sabeis que é Jesus quem fez o Coração de Maria tal qual ele é, e quis fazê-lo uma fonte de luz, de consolação e de toda sorte de graças para aqueles que recorrem a Ela em suas necessidades? Não sabeis que Jesus não apenas reside e assiste continuamente no Coração de Maria, mas é Ele mesmo o Coração de Maria, o Coração de seu Coração e a alma de sua alma, e que, portanto, vir ao Coração de Maria é vir a Jesus, honrar o Coração de Maria é honrar Jesus, invocar o Coração de Maria é invocar Jesus?” (1).
De fato, foi Maria Santíssima quem trouxe à terra o Filho de Deus, o qual havia de redimir a humanidade pecadora, estabelecendo com todas as almas cristãs um comércio admirável e transformador. Neste sublime nascedouro da História da Redenção, quis Jesus ter bem junto de Si um Coração segundo o seu, isento de qualquer inclinação dissonante de sua divindade. Foi o Coração de Maria que conservou todos os mistérios e todas as maravilhas da vida de seu Filho, empregando inteiramente a sua capacidade natural e sobrenatural num exercício contínuo de amor a Jesus — o único objeto de todos os seus afetos. Nada, em Jesus, passava despercebido a Maria. Fossem suas manifestações interiores ou exteriores, fosse sua humanidade ou divindade. Por meio desse amor, o próprio Jesus esteve sempre vivendo e reinando no Coração de sua Mãe: “Se alguém Me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e faremos nossa morada” (Jo 14, 23).
O Imaculado Coração de Maria não é invocado por São João Eudes como se tivesse movimentos próprios, mas como tendo se dissolvido inteiro no Coração Jesus, incapaz de refletir em si qualquer coisa que não seja o próprio Deus. Sua filial audácia fez surgir um termo inédito: o Sagrado Coração de Jesus e de Maria.
Novo manancial de graças
Quando se abrem a esta devoção, as almas recebem graças torrenciais. Ela é destinada a mover mais a vontade que a inteligência, mais o amor que a razão. Sabe-se, pela experiência tantas vezes secular da Santa Igreja — exímia formadora das almas —, que não concorre para a santificação de ninguém aquele que explicita uma doutrina e não conduz pelo próprio exemplo às vias sobrenaturais. Haverá quem faça isso melhor do que Aquela que “guardava todas estas coisas e as conferia no seu coração” (Lc 2, 51)?
Cabe a São João Eudes, ademais, a glória de ter sido o primeiro a celebrar litúrgica e publicamente os Santíssimos Corações. Ao Coração de Maria compôs e celebrou uma Missa em 1648, e ao Coração de Jesus em 1672 — ambas com as devidas aprovações da autoridade eclesiástica e a presença de milhares de fiéis. Este gesto contribuiu na preparação para que o mundo recebesse a revelação desta sublime devoção, como a mais excelente dentre todas, enquanto manifestação do amor salvífico de Jesus.
Do silêncio da clausura para o mundo
Foi em 1673 que Jesus revelou os tesouros de misericórdia de seu Coração aos homens.
Para testemunhar perante o mundo esta revelação, Deus não escolheu uma autoridade renomada, um orador famoso ou um sábio. Quis o Divino Mestre mostrar, mais uma vez, que é na fragilidade que se revela totalmente a sua força, preferindo uma humilde religiosa, acrisolada no cadinho da provação desde tenra infância: Santa Margarida Maria Alacoque, da Congregação da Visitação. Essa jovem borgonhesa, de família muito piedosa, foi, por assim dizer, instruída nas vias espirituais diretamente por Nosso Senhor. “Quem diz ‘escola’ diz também ‘livros’. A Margarida Maria, Jesus fornecia outro ‘manual’: seu próprio Coração que é ‘livro da Vida’” (2).
Favorecida por experiências místicas ao longo de toda a sua vida, ela teve a alma modelada segundo os padrões divinos. Jesus revelara-lhe muitas vezes que, para cumprir sua missão, ela deveria ser flexível e não colocar nenhum obstáculo. “Eu Me fiz a Mim mesmo teu mestre e teu diretor para te dispor ao cumprimento deste grande projeto e para te confiar este grande tesouro que é o meu Coração, que te mostro aqui a descoberto”(3).
Aos vinte e seis anos de idade e quatro de vida religiosa deu-se a grande revelação do Coração de Jesus, mola propulsora de todas as graças insignes que o mundo recebeu para vencer a tibieza, a heresia e deixar-se abrasar pelo amor divino.
Era o dia 16 de junho de 1675, na oitava da solenidade de Corpus Christi. Santa Margarida Maria rezava genuflexa diante da grade aberta do coro com os olhos fixos no tabernáculo, quando o Redentor lhe apareceu sobre o altar e, descobrindo seu Sacratíssimo Coração, lhe disse: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens, que não lhes poupou nada até esgotar-se e consumir-se para provar-lhes o seu amor; e em reconhecimento, não recebeu mais do que ingratidões através de suas irreverências e sacrilégios, e pela indiferença e desprezo que eles têm por Mim no Sacramento do Amor. É por isso que Eu te peço que a primeira sexta-feira após a oitava do Santíssimo Sacramento seja dedicada a uma festa particularmente voltada para honrar o meu Coração em desagravo pelas ofensas que ele recebe” (4).
Jesus bate à porta do nosso coração
Que pungente queixume saído dos lábios de Jesus! Tanto transbordamento de afeição por suas criaturas, tanta rejeição da parte delas!
Cada um de nós certamente já sentiu o duro golpe da ingratidão, da indiferença ou do esquecimento, quando com reta intenção tenhamos nos sacrificado e lançado mão de todos os meios para proporcionar um benefício àqueles que estimamos. Esse menosprezo que nos custa aceitar, e que é motivo de tantas desavenças na humanidade pecadora, assume outra perspectiva quando tem por objeto o próprio Deus.
Não se trata de um coração com personalidade humana, mas o d’Aquele que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Não ofereceu Ele a seus filhos a promessa de bens passageiros, mas a vida eterna e o perdão de todos os crimes, mediante o derramamento de seu sangue na Cruz. Mais ainda: fez dos pobres filhos de Eva o objeto do seu afeto e ternura, desejou estabelecer com eles o seu reino sapiencial, quis reuni-los como a galinha junta os pintainhos debaixo das asas e declarou que suas alegrias consistiam em estar com os filhos dos homens.
O que recebeu em troca? A morte mais ignominiosa e carregada de ódio que jamais houve sobre a terra e o descaso da grande maioria dos homens ao longo da História. Este é o Coração cercado de espinhos que vem bater à porta de nossas almas em busca de reparação e amor. Haveremos de negar-Lhe o que merece como Deus e pede como amigo?
Uma infinidade de tesouros ao alcance de todos
Sendo todo o seu Corpo divino digno de adoração, por que escolheu Ele o coração como sinal sensível de sua manifestação de misericórdia? Precisamente por ser o símbolo de sua vontade santíssima, de sua mentalidade, e o foco de irradiação de sua santidade. É o órgão físico em que pulsa o Verbo encarnado, a Arca preciosíssima que encerra a plenitude da Lei: o amor.
Celebrando o Sagrado Coração, nós rendemos homenagem à sua personalidade divina, insondavelmente perfeita, que abarca as qualidades de todos os anjos e homens desde o começo da criação até o fim dos tempos.
É uma invocação completa e universal, destinada a regenerar a humanidade — como dizia São Pio X —, limpá-la de suas infidelidades e fazê-la gozar da plenitude de seus dons, conforme a promessa à vidente de Paray-le-Monial: “Como te prometi, tu possuirás os tesouros de meu Coração e Eu te permito dispor deles segundo o teu beneplácito. Não sejas mesquinha, porque esses tesouros são infinitos”.(5)
O Coração de Jesus e Maria, píncaro de toda a criação
Comparando toda a ordem estabelecida por Deus na criação a uma imponente montanha, vemos que cada ser ocupa, harmonicamente, o lugar que lhe corresponde, desde um grandioso Serafim até um pequeno colibri. Em seu píncaro está o Sagrado Coração de Jesus e Maria, enquanto protótipo, exemplo e regra viva de todas as perfeições de cada uma das partes do universo.
Vendo no Homem-Deus e em sua Mãe Imaculada o conjunto de todas as qualidades criadas, não é difícil identificá-las e amá-las nos seres que nos circundam. Assim, encontramos algo de sua infinitude numa caudalosa catarata que faz jorrar abundante água desde que o mundo existe, sem nunca “cansar-se”. Suscita também nosso enlevo a generosidade divina espelhada num pelicano que não hesita em abrir o próprio peito e alimentar com sua carne os filhotes aos quais nada tem para dar. Num plano mais elevado, veremos os infatigáveis missionários espalhados pelos cantos mais recônditos da terra, manifestando o desejo que Deus tem de nos salvar; as despretensiosas religiosas que se dedicam à caridade e imolam toda a sua existência pelo bem do próximo, os Pontífices Romanos que nos ensinam a verdade…
Todos, sem exceção, têm uma vocação especifica, cuja essência e plenitude estão neste Coração inefável que jamais se nega a conceder, àqueles que Lhe pedem, o inestimável dom da santidade. Nenhum é mais precioso, nenhum é concedido com maior alegria pelo Senhor através da mediação de sua Mãe. Se os bem-aventurados o receberam, por que não o obteremos também nós?
É por isso que a Igreja repete a cada dia, em uníssono com o passado e o futuro, uma oração que traduz este anseio: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei nosso coração semelhante ao vosso”.
1) Pe. Jean-Michel Amouriaux, Pe. Paul Milcent, Saint Jean Eudes par ses écrits, Médiaspaul, Paris, 2001, p. 140.
2) Pe. Gérard Dufour, Na escola do Coração de Jesus com Margarida Maria, Loyola, São Paulo, 2000, p. 19.
3) Idem, p. 20.
4) Pe. Victor Alet SJ, La France et le Sacré Cœur, Dumoulin ImprimeursÉditeurs, Paris, 1892, pp. 227-228.
5) Pe. Gérard Dufour, op. cit., p. 68.
You keep it up now, undsertand? Really good to know.
That’s cleared my thoughts. Thanks for cnotribuitng.