Via contemplativa: um chamado especial?
Ir. Ariane Heringer Tavares, EP
Conforme os ensinamentos de diversos teólogos, todas as almas em estado de graça são chamadas à contemplação infusa, ou seja, a um convívio celestial, possuindo uma centelha da bem-aventurança de que gozam os justos no Céu. Aqui na terra, contempla-se a Deus como em um espelho. Somente no céu O “veremos como Ele é” (I Jo 3, 2). Com efeito,“não é que a graça da contemplação se dê aos grandes e não aos pequenos, senão que, com frequência, a recebem ambos; mais frequentemente os retirados e, algumas vezes, os casados”.1 Logo, não há estado algum entre os fiéis que possa ficar excluído desta graça, seja na tranquilidade de um claustro ou em meio às atividades da vida secular.
Isso se explica pelo fato de que todos os batizados, ao se tornarem participantes da natureza divina, recebem a graça santificante juntamente com as virtudes e os dons, que se desenvolvem com a caridade. Ora, segundo São Tomás de Aquino, “a vida contemplativa não se ordena a um amor qualquer a Deus, mas ao amor perfeito”.2 Portanto, é a virtude da caridade levada ao pleno desenvolvimento. Nesta perfeição de amor é que terá origem a fecundidade das ações próprias à vida ativa.
Ademais, é um bem que deve ser desejado e que não se nega àqueles que o procuram: “Se não fosse geral este convite, não nos chamaria o Senhor a todos, e ainda que chamasse, não diria: ‘Eu vos darei de beber’. […] Mas, como disse, […] a ‘todos’, tenho por certo que a todos os que não ficarem pelo caminho não lhes faltará esta água viva”.3
Recolhimento: conditio sine qua non…4
Entretanto, para que de fato a Santíssima Trindade faça dos homens a sua morada e os cumule com esta insigne predileção, se requerem algumas disposições espirituais, independentes do estado de vida em que se encontrem.
Além de um profundo desapego das coisas concretas, de uma inteira humildade e pureza de coração e da prática habitual das virtudes, é indispensável ainda outro fator que constitui condição indispensável para o desenvolvimento da vida contemplativa: o recolhimento. “Assim como a dissipação repele os bens divinos ou dificulta sua saudável influência, assim o recolhimento os atrai até nós e favorece sua eficácia”.5
Antes de tudo, é preciso esclarecer que recolhimento não é sinônimo de solidão ou silêncio. Estes são fatores que o tornam propício, mas não se confundem com ele. O recolhimento consiste, mais do que numa atitude exterior de afastar-se das ocupações do dia-a-dia, num estado de espírito que nada pode perturbar. “Uma alma recolhida é, pois, uma alma retirada das criaturas e que busca a Deus, sua vontade e seus desejos para conformar-se com Ele em tudo”.6
É um contínuo estado de oração no qual, mesmo em meio às mais diversas atividades, o coração e a mente estão sempre voltados para o sobrenatural. Em meio à dissipação e à agitação, dificilmente se poderá ouvir o chamado e as inspirações que o Espírito Santo sopra em nossas almas. “O silêncio da alma e dos sentidos exteriores é ‘a ajuda que prestamos a Deus para que Ele se comunique a nós’”.7 Mesmo os pecadores mais empedernidos, quando aprendem a ouvir essa voz interior, iniciam um processo de conversão que pode elevá-los aos altos píncaros da santidade, como narra Santo Agostinho em suas Confissões: “Eis que estavas dentro de mim e eu fora Te procurava. […] Chamaste, clamaste e rompeste minha surdez”.8
Além de atrair para a alma todos os bens celestiais, o recolhimento é o melhor meio de fazê-los frutificar. Ele é como um motor para as boas obras, como o caule que liga o fruto à videira, visto que nos coloca em contato com o Onipotente e nos faz trabalhar tendo em vista não as criaturas, mas unicamente a glória de Deus.
A pessoa que assim procede alcança rapidamente a santidade e tem sua vida transformada:
[…] Outrora tinha as suas horas de meditação e oração; agora a sua vida é uma oração perpétua; quer trabalhe quer se recreie, quer esteja só ou acompanhada, incessantemente se eleva para Deus, conformando sua vontade com a d’Ele: ‘quae placita sunt ei facio semper’ (Jo 8, 29) [“Eu faço sempre aquilo que é do seu agrado”]. E esta conformidade não é para a alma senão um ato de amor e entrega total nas mãos de Deus; as suas orações, as suas ações comuns, os seus sofrimentos, as suas humilhações, tudo está impregnado de amor a Deus.9
Não nos faltam exemplos de como as comunicações divinas se fazem sentir sobretudo nos momentos de recolhimento e de como este leva a frutificar os dons recebidos na contemplação. Entre os inúmeros fatos que nos narram as Sagradas Escrituras, dois são especialmente dignos de nota.
Em primeiro lugar, tomemos os quarenta dias de retiro sobre o Monte Sinai. Antes de firmar com o povo de Israel a Aliança definitiva, em que se realiza a entrega das tábuas da Lei contendo o Decálogo, o próprio Deus convida a Moisés para que suba para junto d’Ele: “Sobe para mim ao monte e deixa-te estar aí” (Ex 24, 12). Exige o Senhor que seu servo se prepare e esteja à altura da missão de que será portador. Para isso, deseja que ele suba, ou seja, que se afaste das coisas terrenas. Moisés sobe, mas somente depois de sete dias de recolhimento o Senhor lhe dirige a palavra. “E, entrando Moisés pelo meio da nuvem, subiu ao monte, e lá esteve quarenta dias e quarenta noites” (Ex 24, 18).
Somente depois de quarenta dias de retiro e contemplação lhe são entregues as tábuas da lei…
Outro relato nesse sentido é a preparação para a descida do Espírito Santo. Consta nos Atos dos Apóstolos que, após a ascensão de Jesus, os discípulos voltaram para Jerusalém e se reuniram no Cenáculo. Muitos deles ainda julgavam que aquele seria o momento da implantação do reino político do Messias e que obteriam com isso uma grande glória mundana.10 No entanto, apesar desse estado de espírito infelizmente reinante, é preciso reconhecer que estavam ali reunidos à espera do batismo de fogo que, segundo as palavras do Mestre, receberiam dentro de alguns dias.
Por isso, “todos estes perseveravam unanimemente em oração, com as mulheres, e com Maria, a Mãe de Jesus” (At 1, 14). Assim, a graça tinha meios para atuar e preparar suas almas para o precioso Dom que receberiam e em virtude do qual expandiriam a Igreja de Cristo por toda a terra. “Estavam recolhidos, modo excelente de preparação para os grandes acontecimentos”11. Passaram-se dez dias de contínua oração até o cumprimento da promessa de Nosso Senhor. “Em geral, Cristo ressurrecto escolhia oportunidades como estas — de reflexão e compenetração da parte de todos — para lhes aparecer, assim como o Espírito Santo para lhes infundir seus dons”.12
Passados esses dias de contemplação, os apóstolos retomaram novamente suas atividades e, através desse recolhimento regenerador, foram assumidos por um entusiasmo e um fogo que antes não possuíam.
Donde destacarmos a necessidade da contemplação para o sustento da vida espiritual, conceito tantas vezes esquecido nos dias atuais, tão penetrados pelo ateísmo e pelo pragmatismo.
[1] ROYO MARÍN, Antonio. Op.cit. p. 454: “[…] no es que la gracia de la contemplación se dé a los grandes y no a los pequeños, sino que con frecuencia la reciben los grandes y con frecuencia los pequeños; más frecuentemente los retirados y alguna vez los casados”. (Tradução da autora)
[2] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Summa Teologiae, II-II, q.182, a. 4, ad 1: “[…] vita contemplativa non ordinatur ad qualemcumque Dei dilectionem, sed ad perfectam”. (Tradução Loyola. Doravante se utiliza sempre esta tradução para esta obra)
[3] SANTA TERESA DE JESUS. Camino de perfección. C. 19, 15. In: Obras completas. 9. ed. Madrid: BAC, 2006, p. 319: “Si no fuera general este convite, no nos llamara el Señor a todos, y aunque los llamara, no dijera: ‘Yo os daré de beber’. […] Mas como dijo, […] ‘a todos’, tengo por cierto que todos los que no se quedaren en el camino, no les faltará esta agua viva”. (Tradução da autora)
[4] Condição indispensável. (Tradução da autora)
[5] ROYO MARÍN, Antonio. La vida religiosa. Madrid: BAC, 1975, p. 442: “Así como la disipación rechaza los bienes divinos o dificulta su saludable influencia, así el recogimiento los atrae hacia nosotros y favorece su eficacia”. (Tradução da autora)
[6] Ibid. p. 439: “Un alma recogida es, pues, un alma retirada de las criaturas y buscando a Dios, su voluntad y sus deseos, para conformarse a Él en todo”.(Tradução da autora)
16 M-BRUNO. Op. cit. p.30: “Le silence de l’âme et des sens extérieurs est ‘l’aide que nous prêtons à Dieu pour qu’Il se communique à nous’”. (Tradução da autora)
[8] SANTO AGOSTINHO. Confissões. Madrid: BAC, 2013, p. 385: “Et ecce intus erat et ego foris, el ibi te quaerebam […]. Vocasti et clamasti et rupisti surditatem meam”. (Tradução da autora)
[9] TANQUEREY. Op. cit. p. 613-614.
[10] A Autora se lembra de ter ouvido este comentário de Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias inúmeras vezes, em diversas homilias, nas missas celebradas diariamente para seus filhos espirituais na Basílica de Nossa Senhora do Rosário, Caieiras, São Paulo.
[11] CLÁ DIAS, João Scognamiglio. E renovareis a face da Terra. O inédito sobre os Evangelhos. Comentários aos Evangelhos Dominicais. Advento, Natal, Quaresma e Páscoa – Ano A. Città del Vaticano – São Paulo: LEV; Lumen Sapientiae, 2012, v. I, p. 398.
[12] Ibid. p. 407.
Texto de excelente conteúdo para ser meditado.!
Salve Maria!
Num retiro espiritual podemos ver a Deus pelo lado da contemplação.
Comentário de um sacerdote no final de um retiro.
´´Eu sentia Graças extraordinárias, era de estar em contato permanente com Deus, me sentir de dentro de Deus e sentir que Deus estava dentro de mim e num convívio constante, num comercio, numa locução permanente com Deus, com o sobrenatural, com os Anjos e mais, eu acho que é essa a clave que nós devemos guardar a vida inteira … muito apresso pela virtude da temperança porque é dentro da temperança que a gente mantém essa relação para com Deus.
Podemos fazer o que seja o dia inteiro, devemos estar em Deus e Deus em nós.
É a melhor preparação para o Céu.“