O senso do ser
Ir. Juliane Vasconcelos Almeida Campos, EP
Assim, quando a criança está ainda no berço, com suas primeiras percepções, investigando o que existe, com um olhar perscrutador, está no alvorecer do seu senso do ser posto já em movimento, conhecendo. Tal noção de ser é sumamente substanciosa para o homem, como alimento próprio à sua inteligência, pois é o que lhe permite conhecer todas as coisas, garantindo-lhe a sanidade mental, uma vez que se não fossem verdadeiras e reais suas apreensões, ele não poderia fazer o uso reto de sua razão. O mesmo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira chega a afirmar:
No espírito humano as regras da lógica são subconscientes. A lógica não faz senão explicitar essas regras. Um homem que não tivesse essas regras invisceradas, como coisas conaturais a seu espírito, seria louco. Um espírito pode ser extremamente primitivo e, ao mesmo tempo, inteiramente lógico. No subconsciente humano cabem tesouros de filosofia, de conhecimento, que, embora implicitamente, são condições para a sanidade mental.3
Esses estímulos iniciais e espontâneos do ser humano, enquanto racional, lhe dão segurança na busca dos objetivos aos quais foi destinado. Por exemplo, se forem dadas algumas bolinhas de cores diferentes a um bebê, para brincar, ele vai escolher a que mais lhe agrada; depois escolherá outra e assim sucessivamente. É a busca instintiva do verdadeiro, do bem e do belo que o levará a escolher uma das bolinhas como a principal, que para ele será a melhor e mais bonita. São os reflexos que antecedem a capacidade de julgar conforme princípios claros e estabelecidos.4 E a criança sabe que a bola não é ela e que uma bola não é a outra. Tem inatos os princípios de identidade e contradição: “o que é, é; o que não é, não é” e “o que é, não é o que não é”.5
Tal conhecimento já começa a manifestar-se quando o bebê abre seus olhos para a luz, distinguindo seu ser do de sua mãe; percebendo que o chocalho é real e verdadeiro, pois escuta seu barulho, que o leite é branco e lhe satisfaz a sensação de fome, sendo por isso bom, que a luz e as cores são atraentes e belas, entretendo-o e fazendo com que ele queira conhecer e aprender mais e mais. Tem ele uma intuição de que sempre há algo mais para conhecer, para além daquela realidade que vê e apreende experimentalmente, ainda sem compreender conceitualmente qualquer expressão abstrata e formal. Em nenhuma época se aprende tanto como quando se é criança, e esta não dissocia o entreter-se do compreender. “Neste nosso mundo de seres ao qual ela acaba de aportar, o ser do homem desabrocha e exclama por consonância com a verdade, bondade e beleza dos seres que observa”.6
Sem saber ainda nenhum conceito metafísico, está a criança ordenadamente conhecendo cada ente em suas propriedades transcendentais ― res, unum, aliquid, verum, bonum, pulchrum ―, seguindo a lógica de seu processo dedutivo, de modo instintivo pelo seu senso do ser. Para o Fr. Garrigou-Lagrange, OP,7 a primeira apreensão intelectual leva precisamente ao ser inteligível das coisas sensíveis. Enquanto a vista alcança o real material, a forma e a cor, a inteligência o alcança como real inteligível. Assim como o ouvido alcança o real como sonoro, e o paladar percebe o mais ou o menos gostoso, a inteligência o capta como real inteligível e verdadeiro. Tem assim, em seu primeiro contato com as coisas, uma primeira noção confusa do ser e do verdadeiro. A partir daí, a inteligência busca o que excede aos sentidos e à imaginação: as razões de ser das coisas, seu porquê, sua causa. Por exemplo: por que um relógio se movimenta, razão que nenhum animal pode perguntar-se.
Deste modo, nossa inteligência, desde o primeiro contato com o real inteligível, compreende que o verdadeiro é o que é, e o juízo verdadeiro é aquele que é conforme com a realidade.
1) O conceito “inato” é empregado neste artigo no sentido de uma percepção intuitiva inerente ao próprio ser humano ― mesmo não tendo ainda ideias concebidas ―, supondo o pleno desenvolvimento do uso da razão para sua perfeita intelecção. De modo que, se falta a um indivíduo a sanidade mental, ser-lhe-á inteiramente impossível tomar consciência desta intuição, que se desperta no contato com as realidades e circunstâncias exteriores.
2) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O alvorecer do senso do ser. São Paulo, 4 maio 1988. Palestra. (Arquivo IFAT).
3) Id. Considerações sobre o processo humano. São Paulo, 1973. Conferência. (Arquivo IFAT).
4) Cf. CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Os dois filhos da parábola, e os dois outros. Arautos do Evangelho, São Paulo, ano 4, n. 45, set. 2005, p. 7-8.
5) Para mais detalhes, ver: GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. El sentido común: la filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1945, p. 148-149.
6) CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O primeiro olhar da inteligência. Lumen Veritatis, São Paulo, ano 3, n. 12, jul./set. 2010, p. 14.
7) Cf. GARRIGOU-LAGRANGE. Op. cit. p. 330-332.
Lumen Veritatis – Vol. 6 – Nº 22 – Janeiro a Março – 2013