Só Deus pode satisfazer a vontade humana
Irmã Kyla Mary Anne MacDonald, EP
Em Deus, a bondade e o querer são idênticos ao seu Ser. Assim, Ele só pode querer o bem. Já as criaturas, todas elas têm uma característica comum, refletindo esta perfeição divina: um amor ou inclinação para o bem, em cada ser, segundo a sua natureza.1 Contudo as plantas e animais, por serem irracionais, não têm senão bens finitos como objeto de seu agir; jamais atingem o Bem supremo — Deus —, pois não são capazes de conhecê-Lo. Essa possibilidade foi concedida somente ao anjo e ao homem, porque têm natureza racional.
O ser humano compreende a linguagem dos símbolos e, assim, o universo lhe fala de Deus. Ademais, vendo o bem finito dos seres, concebe a existência de um bem infinito e o deseja com toda a sua vontade. Por isso, São Tomás declara que “nenhuma coisa pode aquietar a vontade do homem, senão o bem universal. Mas este não se encontra em bem criado algum, a não ser em Deus, porque toda criatura tem bondade participada. Por isso, só Deus pode satisfazer plenamente a vontade humana”.2
Deus requer uma livre cooperação das naturezas inteligentes
É necessário ter em vista que, nesta vida, nossa natureza — e, portanto, nossa vontade — não está em sua perfeição última, mas sim em estado de prova. Deus — que na criação age para sua maior glória —, criou as coisas naturais em estado incompleto, e estas tendem a chegar à sua plenitude através de diversos processos, segundo a sua natureza. Vemos, por exemplo, brotar de uma insignificante semente uma grande sequoia.
Mas tais entes não tendem à sua finalidade livremente e por si mesmos. Deus requer somente das naturezas inteligentes uma livre cooperação para atingirem seu fim: a eterna bem-aventurança.
Quanto à natureza angélica, o definitivo aperfeiçoamento (ou sua recusa e perdição) se deu num só ato da vontade, imediato e definitivo. Não é o que acontece com o homem. Como explica o Doutor Angélico, “o homem por sua natureza não foi feito para atingir, de imediato, sua última perfeição, como acontece ao anjo. Por isso, deve percorrer um caminho mais longo que o do anjo para merecer a bem-aventurança”.3
Outro ponto chave para levarmos em conta é ser a criatura humana, em sua composição, a mais complexa entre todas as criaturas, por causa das diversas naturezas nela contidas. “Está ela na fronteira das criaturas espirituais e corporais”, observa São Tomás, e “por isso, nela se reúnem as potências tanto de umas como de outras criaturas”.4
O mal nunca é amado senão sob razão de bem
Em estado de justiça original, no Paraíso, o homem não sofria nenhuma interferência de sua natureza composta. Antes do primeiro pecado, gozava ele do dom de integridade, pelo qual vivia em pleno equilíbrio interior — entre sua razão, vontade e sensibilidade — e em perfeita harmonia com a vontade de Deus. Cedendo à tentação do demônio e levantando sua própria vontade contra a expressa vontade de Deus, pecou. A ordem anterior foi quebrada e, por castigo, o dom de integridade, aquele equilíbrio perfeito, foi-lhe retirado. Como resultante, toda a sua descendência — mesmo sendo lavada do pecado original pelo Batismo — permanece com o efeito evidente desse pecado em sua natureza.5
São Francisco de Sales afirma haver ficado nossa vontade facilmente sujeita aos caprichos dos apetites inferiores: “o pecado enfraqueceu mais a vontade humana do que obscureceu o entendimento, e a rebelião do apetite sensual, a que chamamos de concupiscência, perturba certamente o entendimento, mas é contra a vontade, que ele excita principalmente à revolta”.6
Contudo, assevera Sertillanges, a vontade não pode deixar de querer o bem no seu sentido universal, pois é ele seu objeto próprio enquanto natureza. “A isso a vontade não pode escapar, e como toda ação não é, no fundo, mais que uma manifestação da natureza, em toda ação que é fruto da vontade, pode-se ver a marca do bem e sua influência”.7
Portanto, ainda quando o homem peca, dá ao pecado uma aparência de bem, pois “o mal nunca é amado senão sob a razão de bem, isto é, enquanto é um bem relativo apreendido como um bem absoluto”.8 E acrescenta São Tomás: “é desta maneira que o homem ama a iniquidade, enquanto que por ela alcança um certo bem, como o prazer, o dinheiro ou coisa semelhante”.9
Para que a vontade humana seja boa deve conformar-se com a divina
Pelo fato de ser esclarecido por uma inteligência ordenada ao universal, o desejo da vontade naturalmente é, de certo modo, infinito, por causa da infinitude do seu objeto. Em face de qualquer bem limitado, conforme nos elucida Garrigou-Lagrange, “a inteligência, verificando imediatamente o limite, concebe um bem superior e, naturalmente, esse bem é desejado pela vontade”.10Ora, se a vontade não dirige o enorme ímpeto do seu querer — um amor espiritual a Deus —, acaba transferindo toda a amplitude deste aos bens sensíveis. Mas como tem desejo de infinito, passa a ser atraída por um abismo implacável: “a concupiscência que não é natural, a do homem depravado, não tem limites, porque, pela sua inteligência, ele concebe sempre novas riquezas e novos prazeres; daí vêm, por vezes, as querelas sem fim entre os indivíduos e as guerras intermináveis entre os povos. O avarento é insaciável, assim como o homem do prazer ou aquele que aspira sempre a dominar”.11
Para ser boa, diz São Tomás, a vontade humana deve atingir sua própria medida, conformando-se com a vontade divina. Isto porque “aquilo que é primeiro em qualquer gênero é a medida e a razão de tudo que é desse gênero”.12 O cerne do ideal moral consiste nessa conformidade e constitui a maior prova da nossa vontade.
“A conformidade mais real, mais íntima, mais profunda”, observa Tanquerey, “é a que existe entre duas vontades”.13 E Deus quer estabelecer conosco exatamente essa estreita afinidade. Em sua bondade, Ele também nos fornece, no Evangelho, um exemplo vivo, sublime e insuperável de como atingir esta feliz condição.
“Não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres”.
A rica variação entre os relatos dos Santos Evangelistas é, sobretudo, evidente quanto aos textos sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Evangelho de São Mateus, por exemplo, ao descrever a agonia de Cristo no Horto de Getsêmani, é o único a mencionar três súplicas distintas — embora essencialmente idênticas —, feitas por Nosso Senhor.
“Adiantou-se um pouco e, prostrando-se com a face por terra, assim rezou: ‘Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres’” (Mt 26, 39). Depois de interromper sua oração para admoestar e chamar à oração os discípulos que se encontravam dormindo, “afastou-se pela segunda vez e orou, dizendo: ‘Meu Pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade!’” (Mt 26, 42). A seguir, ao achar seus três companheiros novamente dormindo, “deixou-os e foi orar pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras” (Mt 26, 44).
Dos outros evangelistas, somente São Lucas alude a esse episódio, mas faz referência a uma única súplica, embora acrescentando o comovente detalhe do suor de sangue, tão profuso que escorreu pela terra (cf. Lc 22, 44). Dada a forçosa brevidade observada pelos evangelistas, qualquer repetição pareceria convidar o leitor a uma atenção toda especial. São João Crisóstomo chega a afirmar ser sempre uma demonstração especialíssima da verdade, uma tríplice repetição na linguagem dos Evangelhos.14 Que admirável lição quis o Divino Espírito Santo nos dar ao inspirar São Mateus a sublinhar essa tríplice renúncia de Jesus à sua própria vontade bem como a aceitação incondicional da vontade do Pai?
Com as palavras, “Não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres”, ou então, nas palavras transmitidas por São Lucas: “Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua” (Lc 22, 42), o Salvador manifesta uma atitude constante durante sua vida. Assim, lemos: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra. (Jo 4, 34); “Não busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 5, 30); “Pois desci do Céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 6, 38). O oferecimento no Monte das Oliveiras, então, não é senão uma culminação desta submissão contínua.
Em Cristo há duas vontades
Assegura ainda São Tomás ser preciso afirmar que, tendo o Filho de Deus assumido uma natureza humana perfeita, e pertencendo a vontade à perfeição desta, Ele assumiu também uma vontade humana. Contudo, ao assumir nossa natureza, não sofreu Ele nenhuma diminuição quanto à sua natureza divina, à qual compete ter vontade. “Por isso, é necessário dizer que em Cristo há duas vontades, uma divina e outra humana”.15
Deste modo, ao pronunciar as palavras “a minha vontade”, Jesus podia, com toda a propriedade, falar de sua vontade divina. Não obstante, Nosso Senhor falava da sua vontade humana, como fica claro pelo contexto, pois Ele “não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens” (Fl 2, 6-7).
Assim, servindo-se de sua natureza humana, sendo do nosso próprio gênero, Jesus se fez um Modelo para nós, para sermos mais prontamente movidos a segui-Lo. Se Ele — enquanto Deus igual ao Pai, e enquanto homem completamente sem culpa —, livre e amorosamente, submeteu sua vontade humana à vontade do Pai, fica impossível duvidar da necessidade de a humanidade fazer o mesmo.
Mas como adequar nossas pobres vontades com a d’Aquele que declara: “Assim como os céus se elevam acima da terra, elevam-se os meus caminhos sobre os vossos” (Is 55, 9)? Sobretudo depois da contaminação do pecado original, pois só temos a possibilidade de agir estavelmente segundo a Lei de Deus com auxílio da graça. De igual maneira, só pela influência de uma virtude especial somos capacitados a conformar as nossas vontades à do Pai, a exemplo de Jesus, movidos por amor sobrenatural.
Caridade e santo abandono ao beneplácito divino
No Batismo, junto com a graça santificante, as virtudes infusas são proporcionadas às potências humanas para aperfeiçoar a natureza. Entre essas virtudes, a caridade corresponde à vontade, e a leva ao ato sobrenatural de amor a Deus. Conforme São João da Cruz, este é o mais alto grau de união transformante: “quando as duas vontades, a da alma e a de Deus, de tal modo se unem e conformam que nada há em uma que contrarie a outra. Assim, quando a alma tirar de si, totalmente, o que repugna e não se identifica à vontade divina, será transformada em Deus por amor”.16
Desse modo, mesmo na submissão necessária à chamada vontade significada de Deus, abrangendo os preceitos expressos estabelecidos por Ele, é a caridade que nos move a renunciar ao proibido e a obedecer aos decretos divinos, de modo ideal. No entanto, na conformidade à vontade de beneplácito de Deus brilha uma generosidade e amor ainda maiores, pois a prática da lei é algo mensurável e sempre claro, mas o santo abandono ao beneplácito divino exige uma flexibilidade e confiança sem medida, porque por meio dele No Batismo, as virtudes infusas são proporcionadas às potências humanas para aperfeiçoar a natureza adere-se, por amor, ao que nem se conhece ou entende plenamente ainda; adere-se, enfim, a todo o plano de Deus a nosso respeito, simplesmente porque Ele quer, apesar da aversão espontânea que nossa natureza sensitiva possa apresentar.17
“Venha a nós o vosso Reino”
As palavras de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras refletem o mais perfeito modelo desta disposição de alma, conforme ensina Santo Agostinho, referindo-se ao Corpo Místico de Cristo: “Esta expressão da cabeça é a salvação do corpo inteiro; esta expressão instrui todos os fiéis, anima os confessores e coroa os mártires, porque, quem poderia vencer os ódios do mundo, o ímpeto das tentações e os terrores da perseguição, se Jesus Cristo não tivesse dito a seu Pai, em todos e por todos: ‘Seja feita vossa vontade’? Aprendam esta voz todos os filhos da Igreja, para que, quando venha a dureza da adversidade, vencido o temor e o espanto, suportem com resignação qualquer tipo de sofrimento”.18
Existe, então, uma solução para o problema da vontade humana, tão embaraçada pela desordem da natureza decaída com a qual nascemos e pelo mundo imerso em pecado onde habitamos, fazendo surgir a esperança da vida eterna. Pois, segundo as palavras consoladoras de São João Evangelista, “o mundo passa com as suas concupiscências, mas quem cumpre a vontade de Deus permanece eternamente” (I Jo 2, 17).
Para estimular-nos mais ainda, o Divino Mestre afirmou ter um laço de união tão forte como o de família com quem segue esse caminho: “Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 50). Assim, foi Ele mesmo Quem nos ensinou a preparar, ainda nesta Terra, as condições para se estabelecer o Reino de Deus, o qual não é senão uma conformidade de todas as vontades à vontade divina, tornando este mundo semelhante ao Céu: “Venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6, 10).
2 Idem, I-II, q.2, a.8.
3 Idem, I, q.62, a.5, ad.1.
4 Idem, I, q.77, a.2.
5 Cf. Idem, II-II, q.164, a.1.
6 SÃO FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus. L.1, c.17.
7 SERTILLANGES, Antonin-Gilbert. S. Thomas d’Aquin. 4.ed. Madison: Alcan, 1925, v.II, p.207.
8 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.27, a.1, ad.1.
9 Idem, ibidem.
10 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. O homem e a eternidade. Lisboa: Aster, 1959, p.22.
11 Idem, p.17.
12 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.19, a.9.
13 TANQUEREY, Adolfe. Compêndio de Teologia ascética e mística. 6.ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1961, p.238.
14 Cf. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea, v.II: São Mateus, c.XXVI, v.39-44.
15 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, III, q. 18, a.1.
16 SÃO JOÃO DA CRUZ. Subida do Monte Carmelo, L.II,c.5. In: Obras Completas. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
17 Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La Providencia y la confianza en Dios. 2.ed. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1942, p.201-203.
18 SANTO AGOSTINHO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea, v.II: São Mateus, c.XXVI, v.39-44.
Como conciliar a tese contida no parágrafo a seguir, extraído deste artigo, com a morte, por exemplo, de uma criança, onde não houve esse tempo necessário para percorrer o caminho referido pelo autor?
‘Quanto à natureza angélica, o definitivo aperfeiçoamento (ou sua recusa e perdição) se deu num só ato da vontade, imediato e definitivo. Não é o que acontece com o homem. Como explica o Doutor Angélico, “o homem por sua natureza não foi feito para atingir, de imediato, sua última perfeição, como acontece ao anjo. Por isso, deve percorrer um caminho mais longo que o do anjo para merecer a bem-aventurança”.3’