“Morte” da metafísica: raiz da separação da Fé e Razão
Irmã Juliane Vasconcelos Almeida Campos, EP
Nesta perspectiva metafísica da Philosophia perennis, o Ser Absoluto deixa seus vestígios, de modo análogo a pegadas, nos efeitos que guardam menor relação com ele; e deixa sua imagem ― imago Dei ― naqueles que têm relação causal mais estreita com ele 2 , sendo, além de sua causa, seu fim último, atraindo-os para si, como é o caso dos seres inteligentes. É por isso que diz Dionísio: “Deus converte tudo para si” 3 .
Existe, assim, um desejo natural interno ― desiderium naturale ―, uma busca deste Ser Absoluto, no qual todos os seres se fundamentam e que tudo mantém em seu próprio ser 4 . O princípio de causalidade é o que permite ao homem elevar-se a tal causa absoluta e primeira de todas as coisas. É este o movimento espontâneo em uma criança quando contempla, por exemplo, o firmamento e as estrelas. Logo compreende as palavras do salmista: “Narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 18,2). “O primeiro olhar da inteligência sobre o céu estrelado conduz a Deus e faz vislumbrar sua grandeza” 5 . Pode-se dizer, então, que este primeiro olhar da inteligência humana sobre o real já contém, ainda que confusamente, “toda a verdade que a sabedoria filosófica descobrirá, que se elevará ao conhecimento do Ser supremo, Verdade primeira, o qual, segundo a Revelação se chama ‘Aquele que é’” 6 .
Nesse sentido, pode-se afirmar que esta busca do Absoluto no homem é inerente ao seu próprio ser. Tinha razão quando afirmava São João Damasceno que “o conhecimento de que Deus existe está naturalmente inserido em todos” 7 . Por isso, o homem sempre teve o desejo de conhecê-lo conscientemente, tornando-se necessária sua explicitação racional. E quando, pelo raciocínio, o homem chega à contemplação de tal Absoluto ― que já estava em si mesmo, de maneira transcendental e intrínseca ―, ele se dá conta de que este era o objeto de seu desejo, sob o nome de felicidade, a qual perseguia como fim último.
Ora, a modernidade irrompeu na História como algo novo e libertador, numa ruptura com todo o patrimônio da humanidade vindo do passado. A revolução científica dos séculos XVI-XVIII parecia desvendar um novo panorama de conhecimento para o homem. O racionalismo de Descartes ― considerado por muitos como o pai da filosofia moderna ―, pôs em descrédito tudo o que não fosse comprovado cientificamente, colocando a metafísica da causalidade entre parênteses. Assim, até a própria filosofia, antes tida e havida como a ciência da razão, do pensamento e da transcendência, a “scientia rerum per altissimas causas”, passa a ser pensada segundo o método experimental científico.
Mas Descartes e os que o seguiam ainda “pensavam metafisicamente”, apesar do racionalismo e da desfiguração da metafísica escolástica. Por esta razão, costuma-se apontar para o fato de a filosofia moderna ter surgido, realmente, com a fundamentação crítica da filosofia tradicional, e de Kant ter sido justamente aquele que colocou em dúvida a possibilidade da metafísica 8 . Porém, a metafísica se ocupa das coisas divinas 9 , tendo por fundamento o princípio de causalidade, o qual ― ontológica e intrinsecamente ―, era o equilíbrio da razão e do ser humanos. E o que fez Kant foi tentar desmontar seus argumentos lógicos, eliminando-a do panorama filosófico. Consequentemente, uma vez “morta” a metafísica da causalidade, iniciou-se um processo que culminou ― na perspectiva metafísica do Ser Absoluto ― com Nietzsche, decretando a “morte” do próprio Deus.
A partir de Kant, a questão religiosa tornou-se um dos pontos centrais da mudança de reflexão da filosofia, e ele a fundamenta na razão prática 10 . Contrariando tudo o que veio antes e separando a Razão da Fé, afirma que a filosofia não tem nenhuma relação com a religião, pois sua função seria apenas a de mostrar que não podemos saber se Deus existe ou não. Ele crê que a razão especulativa não leva a nenhuma crença, mas sim ao agnosticismo, uma vez que os argumentos tradicionais vão mais além da experiência humana. E sustenta que as provas especulativas da existência de Deus são insuficientes, sendo impossível o pensamento metafísico. Para Kant, a única prova da existência de Deus é “uma prova prática ou moral, que produz a fé moral, cuja certeza é subjetivamente suficiente ainda que insuficiente objetivamente (Crítica da Razão Prática, Parte I, Livro II, cap. II, 5)” 11 . A crítica kantiana e pós-kantiana subverteu, assim, as provas tradicionais da existência de Deus e a objetividade dos princípios racionais.
Kant considera que o conceito tradicional de metafísica transformou-se, na Idade Média, em algo de tal modo extrínseco e em si confuso, que não se chega absolutamente ao ponto em que a metafísica mesma ou o μετά, em seu sentido próprio, passem a ser um problema filosófico, por causa da união entre Fé e Razão. Por isso, em sua concepção crítica elimina a Fé de seu pensamento, e se atém à tarefa de questionar a concepção dogmática do que chama de “filosofia primeira”, buscando em seu interior um impulso para “transformar a metafísica mesma em problema” 12 .
Porém, sua “problematização” se reduz a responder às inquietudes filosóficas com a mera receptividade dos sentidos. Deste modo, segundo suas concepções, as noções que se tem a respeito do homem e da natureza, da vida e da morte, ou acerca do livre-arbítrio, da alma e de Deus permanecem completamente desconhecidos em si mesmos, porque não se pode ― em virtude da limitação dos sentidos ―, provar sua existência. Para Kant, não assiste ao homem nenhum direito de ser positivo a respeito de coisa alguma, e é mister pôr de parte todos os dogmas. “É interessante notar quão positivo pode ser este filósofo em sua enunciação do ponto de vista positivo. Kant acredita profundamente no testamento racional da descrença. Mata o dogma com espada dogmática” 13 .
Kant distingue as ideias (puros conceitos da razão) e as categorias (conceitos intelectivos puros) como conhecimentos de espécie, origem e uso diversos, e afirma que essa distinção é importante elemento para a fundamentação de uma ciência que deva conter o sistema de todos esses conhecimentos a priori; sem essa distinção “a metafísica é absolutamente impossível ou, ao sumo, não passa de tentativa desordenada e imperfeita, sem conhecimento dos materiais que se manuseiam e da aptidão dos mesmos para serem aplicados desta ou daquela maneira, que se propõe apenas construir um castelo de cartas” 14 . Considera que se a Crítica da Razão Pura não houvesse conseguido outra coisa senão distinguir essa lacuna metafísica, já teria sido uma grande contribuição para a filosofia.
Com a demolição da metafísica especulativa, feita por Kant, e, em consequência desta, o traslado do religioso ao espaço extrarracional e extrametafísico do sentimento que a ela se seguiu na evolução filosófica, abriu-se uma fossa insalvável entre a nova concepção metafísica e a religião, pois esta nova concepção passa a ser mera razão teorética, sem acesso a nenhum Deus. E religião não tem lugar no espaço da ratio 15 . Dá-se a ruptura entre Fé e Razão, e o Absoluto passa a ser uma mera ideia intuitiva.
2 2 ROMERO-BARÓ, José M. La huella de Dios en la naturaleza: una aproximación trinitaria. Em: Science and Religion: Global Perspectives. Programa do Metanexus Institute. [Em linha]. Philadelphia, USA (Jun., 2005); p.6. [Consulta: 10 Nov., 2008].
3 DIONISIO. De div. nom. C.4 § 10: MG 3,708. Citado por SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.109, a.6.
4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.12, a.8.
5 GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. El sentido común: la filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1945. p.335.
6 Ibid., p.332.
7 SÃO JOÃO DAMASCENO. De Fide Orthodoxa, 1, 1, 3 – PG 94, coll. 789, 793. Citado por GILSON, Étienne. Elementos de filosofía cristiana. Madrid: Rialp, 1970. p.58.
8 HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p.64.
9 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra los gentiles. L.I, c.4.
10 MONDIN, Battista. Introdução à filosofia. 16a. ed. São Paulo: Paulus, 2006. p.93-94.
11 GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. Dios: la existencia de Dios. 2a. ed. Madrid: Palabra, 1980. p.28; 44.
12 HEIDEGGER, Op. Cit., p. 54.
13 THOMAS, Henry. Perfil biográfico: Immanuel Kant. Em: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2008. p.134-135.
14 KANT, Immanuel. Prolegômenos: a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência. São Paulo: Nacional, 1959. p.103.
15 RATZINGER, Joseph. El Dios de la fe y el Dios de los filósofos. [Em linha]. [Consulta: 20 Jun., 2009].
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