Aquele que portava Cristo no seu coração
Ir. Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP
Sólido e bem edificado, com suas galerias de arcos tipicamente romanos, ele atravessa os séculos, insensível ao tempo, como imagem de um passado que poucos sabem admirar. Com efeito, hoje em dia o Coliseu é objeto da incessante curiosidade dos turistas que o visitam durante todo o ano. Muitos formam intermináveis filas para nele ingressar, com o desejo de fotografá-lo e depois vangloriar-se de ter estado num dos locais mais famosos do mundo; outros percorrem-no com o mero intuito de constatar seu valor artístico e estrutural; poucos são, porém, os que para lá se dirigem na intenção de rezar.
O Coliseu, teatro de crueldades
O imperador Vespasiano, invejoso da afetuosa lembrança que o povo guardava a respeito de César Augusto e sabendo que este, antes da sua morte, prometera construir um imenso anfiteatro que excedesse em esplendor todos os edifícios do mundo, concebeu a idéia de realizar este plano e assim rivalizar em fama com aquele seu predecessor. No segundo ano após sua ascensão ao trono (72 d.C.), Vespasiano iniciou sua obra. Entretanto, também a ele não seria dado ver o objeto de suas ambições, e a morte colheu-o antes de ser completada a construção, que só seria dedicada no ano 80 d.C., por seu filho Tito. Este último teve grande parte na ereção do anfiteatro, empregando nos trabalhos aproximadamente 50 mil prisioneiros, trazidos de sua vitoriosa campanha na Judéia.
Construída especialmente para ser palco daqueles jogos de gladiadores que os romanos tanto apreciavam, a gigantesca mole estava, porém, reservada para servir de quadro a combates de fé e de heroísmo muito mais gloriosos do que desprezíveis eram aqueles espetáculos pagãos! Se os divertimentos do Coliseu deixaram uma mancha no passado por causa das horríveis cenas de crueldade ali representadas, outros fatos, sob o ponto de vista sobrenatural, constituem uma das mais belas páginas da história da Santa Igreja.
Pedestal de bem-aventurados
É com espírito de piedade que deve penetrar no Coliseu o verdadeiro peregrino católico. Bastará permanecer em silêncio por um curto tempo, para perceber os imponderáveis e inverossímeis de fé, força e coragem que habitam sob essas numerosas arcadas. É evocativo esse edifício, no qual cada pedra tem um belo fato para contar e até as gramas e os musgos mais recentes desejariam dizer uma palavra sobre aquele passado feito de sangue, dor e glória. Contemplando mais detidamente essa arena, outrora pedestal de tantos bem-aventurados, podemos ainda divisar os compartimentos onde as feras eram mantidas na fome. Vê-se também ao lado destes as celas que aprisionaram os que hoje constituem uma verdadeira legião, no gozo da visão beatífica. Essas veneráveis ruínas, nas quais refulge um misterioso brilho sobrenatural, parecem cantar, ao longo dos séculos, a célebre frase latina: sine sanguine non fit remissio; lembrando aos homens que, para ser verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, é necessário primeiro segui-Lo até as ignomínias do Calvário para depois participar do triunfo da ressurreição. Sim, foi sobre essas pedras benditas, banhadas de sangue católico, que nasceram as raízes da era em que a filosofia do Evangelho dominou sobre todos os povos.
Ouçamos, pois, atentos, um dos emocionantes feitos que esses valos, essas muralhas e arcadas têm a nos narrar.
Inácio, o Teóforo
Corria o ano 106 da era cristã. O imperador Trajano festejava sua vitória sobre Decébalo, rei da Dácia. Querendo manifestar seu reconhecimento aos deuses, a quem atribuía seu recente sucesso, Trajano organizou uma perseguição contra os cristãos que negassem a existência dessas divindades. Entre os condenados estava um venerável ancião, presa de grande valor, — pois se tratava do bispo de uma das cidades de maior importância naquela época — varão que gozava de muita estima e autoridade entre os fiéis da Ásia Menor, por ter sido discípulo do evangelista São João e designado pelo próprio São Pedro para assumir o cargo naquela Igreja: Inácio de Antioquia.
Segundo uma antiga tradição, o primeiro encontro entre o imperador e Inácio dera-se quando este último, sabendo da passagem do césar por sua diocese, fora apresentar-se voluntariamente a ele. Submetido a um interrogatório no qual Trajano tratou-o de “espírito malvado”, respondeu o santo com majestade: “Ninguém pode chamar a Teóforo de espírito malvado”. “Quem é o Teóforo ou portador de Deus?” perguntaram-lhe. “É aquele que leva a Cristo em seu peito…” Instado pelo imperador para que se explicasse mais sobre essa afirmação, o homem de Deus declarou: “Está escrito: ‘Habitarei e andarei no meio deles’” (2 Cor 6, 16). Assim, por essas palavras, ele mesmo dava testemunho de um milagre que viria a ser confirmado após o seu martírio.
Trajano ordenou, pois, que Inácio fosse acorrentado e conduzido a Roma, sob a custódia de dez soldados, para ali ser lançado às feras no anfiteatro Flaviano.
Dolorosa viagem, desfile triunfal
Grande foi a consternação dos fiéis ao conhecerem a sentença que recaíra sobre seu amado pastor. Ele, pelo contrário, regozijava-se e não deixava de dar graças a Deus por ter sido achado digno de tão grande misericórdia. Já antes da partida, embarcando no porto de Selêucia, a notícia de sua detenção espalhara-se por aquelas regiões e de todas as partes acorriam os cristãos para vê-lo passar e dar um último adeus àquele que os precederia no Reino dos Céus. A dolorosa viagem viu-se, então, transformada em verdadeiro desfile triunfal. Em Esmirna, o bispo São Policarpo, acompanhado de seu rebanho, acolheu-o com manifestações de homenagem e respeito. Também as comunidades de Éfeso, Trales e Magnésia foram-lhe ao encontro em grande multidão, desejosas de pedir sua bênção e testemunhar os padecimentos daquele atleta de Cristo. Ele, de seu lado, não esquecera a missão que o Senhor lhe confiara e continuava a exercer seu ministério, apesar de ter as mãos apertadas por grilhões. A muitos batizou pelo caminho, a outros edificou pelas suas palavras cheias de unção, e a um número incontável inflamou na caridade, arrastando-os com seu exemplo a acompanhá-lo no martírio.
Seu zelo incansável levou-o a escrever sete cartas, dirigidas àquelas mesmas Igrejas que tão fervorosamente o haviam recebido. Seus escritos, verdadeiros tesouros de doutrina e espiritualidade, podem ser considerados como “a segunda formulação doutrinária cristã”. 1
Zeloso pregador da doutrina
Uma de suas principais preocupações estava na união que os fiéis deviam manter com Jesus Cristo, através da legítima hierarquia: bispos e presbíteros. Assim, exortava ele na carta aos magnésios: “Esforçai-vos por ficar firmes na doutrina do Senhor e dos apóstolos, para que tudo quanto fizerdes tenha bom êxito na carne e no espírito, pela fé e pela caridade, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, com vosso digno bispo e a bem entretecida coroa espiritual de vosso presbitério, juntamente com os diáconos agradáveis a Deus. Sede submissos ao bispo e uns aos outros como, em sua humanidade, Jesus Cristo ao Pai, e os apóstolos a Cristo e ao Pai e ao Espírito, para que a união seja corporal e espiritual.” 2 Em outra passagem, aconselhava a seu amigo Policarpo: “Tem cuidado pela unidade, pois nada há de melhor.” 3
Ao bispo de Antioquia é devida a honra de ter dado à Santa Igreja, por primeira vez, o glorioso título de católica: “Onde estiver o bispo, ali estarão também as multidões, da mesma forma que onde estiver Jesus Cristo, ali estará a Igreja Católica”. 4
Também foi ele o defensor de um ponto que só viria a ser elevado à categoria de dogma séculos mais tarde: o parto virginal da Santa Mãe de Deus. Assim escreveu aos efésios: “ao príncipe deste mundo foi ocultada a virgindade de Maria, seu parto e também a morte do Senhor”. 5 Aos seus caros esmirnenses também afirmava: “Crendo de igual modo que verdadeiramente nasceu da Virgem, foi batizado por João ‘para que nele se cumprisse toda a justiça.’” 6
A doutrina de Inácio era clara e segura; ele a haurira dos lábios daquele discípulo a quem tantos mistérios haviam sido revelados ao repousar a cabeça sobre o peito do Verbo Encarnado e nos longos anos de convivência com Maria Santíssima.
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1)CRISTIANO, Año. BAC, Madrid, 2006, v. X, p. 426-434.
2 ) Carta aos Magnésios, in Liturgia das Horas. São Paulo: Paulus, 2000, v. III, p. 473.
3 ) Carta a São Policarpo, ibidem. São Paulo: Paulus, 2000, v. III, p. 510.
4 ) CRISTIANO, Año. Ibidem, p. 429.
5 ) BUTLER, Alban. Vidas de los Santos de Butler. México: John W. Clute S.A. 1968, v. I, p. 220-224.
6) Carta aos Esmirnenses, in Liturgia das Horas. São Paulo: Paulus, 2000, v. III, p. 122.