A realidade que só a fé alcança
Ir. María del Pilar Perezcanto Sagone,EP
Imaginemos alguém assistindo a uma peça de teatro. Enquanto recebe notícia da música mediante os sons que lhe chegam aos ouvidos, seus olhos veem o que acontece no palco, a movimentação dos atores, o desenrolar das cenas, etc. Portanto, a audição e a visão estão ativas. Suponhamos, ainda, tratar-se de um teatro frequentado por pessoas de elevado status social e que se respira o suave aroma dos perfumes que usam: é a participação do olfato. E, finalmente, consideremos o nosso espectador sentado em uma cadeira confortável saboreando um delicioso chocolate francês: tato e paladar. Podemos concluir, então, que essa pessoa é influenciada pela realidade exterior através dos cinco sentidos. 1
São Tomás afirma que nada existe na inteligência humana que não tenha passado antes pelos sentidos – “Omnis nostra cognitio incipit para sensu” . 2 Ou seja, os sentidos têm um papel importante na vida e no desenvolvimento intelectual de todo ser humano. Como diz o Doutor Angélico, nem mesmo os anjos têm poder para introduzir algo no imaginário que os sentidos não tenham percebido anteriormente: “O Anjo age sobre a imaginação, não certamente imprimindo nela alguma forma imaginária que de nenhum modo tenha antes sido recebida pelos sentidos, pois o Anjo não pode fazer que um cego imagine as cores “.3
O próprio Deus se vale dos sentidos para fazer-nos conhecer o que deseja, pois “Deus provê a tudo de acordo com a natureza de cada um. Ora, é natural ao homem elevar-se ao inteligível pelo sensível, porque nosso conhecimento se origina a partir dos sentidos”. 4 Inclusive as verdades reveladas penetram em nossa alma através dos sentidos, principalmente através da audição, como afirma o Apóstolo: ” A fé provém da pregação e a pregação se exerce em razão da palavra de Cristo”. (Rm 10:17)
Podem enganar-nos nossos sentidos?
Entretanto existe uma realidade muito mais importante do que aquela que nossos sentidos conseguem captar: a realidade sobrenatural.
Tudo o que acontece na transesfera e que os seres humanos são incapazes de perceber – as influências dos Anjos e demônios sobre as almas, as graças que são derramadas sobre os homens, a própria presença de Deus em todas as partes, etc. – tem uma importância única no desenvolvimento da história. Ocorre que muitas vezes esquecemos dessa realidade pensando que somente o que vemos, ouvimos, olfatamos, apalpamos e degustamos é o que realmente existe. Oh ilusão! É sob esse ponto de vista que podemos afirmar que os nossos sentidos nos enganam, pois nos mostram apenas a realidade material, escondendo-nos as verdades que a nossa fé nos revela.
Exemplo eloquente encontra-se em um cântico intitulado “Adoro te devote” composta pelo Doutor Angélico, referindo-se a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo na Sagrada Eucaristia:
Visus, tactus, gustus in te fallitur,
sed auditu solo tuto creditur:
credo quidquid dixit Dei Filius
nil hoc verbo veritatis verius.
A vista, o tato, o paladar em Vós falham:
mas só pelo o que ouço , acredito firmemente.
Creio em tudo o que disse o Filho de Deus;
nada há mais verdadeiro que esta palavra da Verdade. 5
Vemos, assim, que, no caso do “Pão dos Anjos”, somente nossos ouvidos concordam com a realidade quando ouvimos as palavras do sacerdote que fala — in persona Christi —ao realizar a Consagração: “Isto é o meu corpo” e “Este é o cálice do meu Sangue”. No entanto, os outros sentidos falham, pois não nos mostram o grande mistério que se esconde por detrás das Sagradas Espécies.
Visão naturalista: a verdadeira visão?
Há muitas pessoas que dizem: “É absurdo acreditar naquilo que os nossos sentidos não podem perceber, pois, quem pode comprovar que existe verdadeiramente?” Consequentemente, tais pessoas abandonam a fé católica, recusando-se a reconhecer que o fato de que seus sentidos externos são incapazes de contemplar tais verdades, não significa, de forma alguma, que elas realmente não existam.
Uma metáfora utilizada por Monsenhor João Clá Dias 6 ilustra eloquentemente o que foi dito: “Vamos supor que estamos viajando em um carro e contemplando um belo panorama. De repente, ao passar por um charco, os vidros do veículo se cobrem de lama e, consequentemente, deixamos de contemplar o panorama. Seria coerente afirmar que o panorama desapareceu somente porque os nossos olhos deixaram de vê-lo? A resposta negativa é evidente. O mesmo acontece no que diz respeito à existência de Deus e das realidades sobrenaturais: elas não deixam de existir simplesmente porque nós, pobres mortais, não somos capazes de contemplar.
Alguém poderia objetar: Se Deus realmente existe, por que não permite que O vejamos? São Teófilo de Antioquia responde:
“Deus é experimentado por aqueles que podem vê-Lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos”. 7
Afirma o próprio São Tomás, referindo-se ao conhecimento que podemos ter de Deus: “o que é cognoscível em si mesmo não é cognoscível por um intelecto por exceder em inteligibilidade o intelecto”.8 E acrescenta o seguinte exemplo: “O sol, ainda que seja ao máximo visível, não pode ser visto pelos morcegos em razão do excesso de luz”.9
Mons. João Clá Dias 10 explica, citando o Doutor Angélico, que Deus é “sumamente visível”, no entanto, assim como os morcegos são incapazes de ver a luz do sol porque eles não têm olhos, nós não podemos ver a Deus, porque nosso olhar não tem essa faculdade. “Ele é para todos universalmente incompreensível”, — declara São Dionisio —, ” e não pode ser conhecido pelos sentidos” . 11
Tomás de Kempis nos adverte a esse respeito: “Procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus”.12
Qual deve ser, então, o papel dos sentidos, em relação à fé? Monsenhor João responde: “Face à fé os sentidos têm que entregar-se, têm que render-se, nós temos a obrigação de dobrar os joelhos, de juntar as mãos e dizer: eu aceito” . 13
2 SÃO TOMÁS DE AQUINO, apud CLÁ DIAS, João Scognamiglio. A fidelidade ao primeiro olhar. São Paulo, 2007. (Arquivo IFTE).
3 Id. S. Th. I, q.111, a.3, ad.2.
4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. S. Th. I, q.1, a.9.
5 ARAUTOS DO EVANGELHO. Liber cantualis. São Paulo: Salesiana, 2011, p.74.
6 CLÁ DIAS. João Scognamiglio. Estamos em Deus e a Ele devemos nos abandonar!: Homilía. São Paulo: 14 ago. 2006. (Arquivo IFTE).
7 SAN TEÓFILO DE ANTIOQUÍA. In: COMISIÓN EPISCOPAL DE PASTORAL LITÚRGICA DE MÉXICO Y CONFERENCIA EPISCOPAL DE COLOMBIA. Liturgia de las horas. 20. ed. Barcelona: Desclée De Brouwer, 2005, v. II, p.217.
8 SANTO TOMÁS DE AQUINO. S. Th. I, q.12, a.1.
9 Loc. cit.
10 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Da série sobre a Fé II. Conferencia. São Paulo, 18 nov. 2006. (Arquivo IFTE)
11 SAN DIONISIO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op.cit. ad. 1.
12 KEMPIS, Tomás. Imitación de Cristo. Sevilla: Apostolado mariano. [s.d.], p.5.
13 CLÁ DIAS. Da série sobre a Fé II. Op.cit.