Confiança, a regra de ouro
Ir. Carmela Werner Ferreira, EP
Ergue-se na cidade de Petrópolis um edifício de harmoniosas proporções, conhecido pelo nome de Palácio Rio Negro. Célebre por ter servido como residência oficial de verão aos presidentes da República Velha, o prédio reassumiu em 1997 este honroso papel no panorama nacional. A distinção e o bom gosto de seus salões nos falam de recepções memoráveis, jantares de gala e negociações diplomáticas de alto interesse para o País.
Entretanto, pouco conhecida é a história de uma jovem que habitou essa mansão no final do século XIX: Francisca do Rio Negro, nona filha de Manuel Gomes de Carvalho Filho, Barão do Rio Negro, e de Emília Gabriela Teixeira Leite de Carvalho. A vida admirável desta aristocrata nascida nos anos de prodigalidade do ciclo do café contém lances dignos de figurar nas melhores páginas da hagiografia católica. Um desses episódios, comovente e rico em exemplos, cabe-nos hoje considerar.
Uma alma magnânima nascida em berço de ouro
Dada a importância social e a opulência de sua família, Francisca do Rio Negro veio ao mundo em berço de ouro. Possuía já nos primórdios o que para muitos constitui a ambição de toda a vida: fortuna, prestígio e beleza. Este ponto de partida deu-lhe a oportunidade de experimentar a grande verdade do Livro Sagrado: “Vi tudo quanto se faz debaixo do sol, e eis: tudo vaidade e vento que passa” (Ecl 1, 14). Como fruto de sua magnanimidade, sentia em si um apelo para elevados ideais e superiores dedicações, não podendo compreender uma existência empregada apenas a serviço de seus próprios interesses.
Assim, sob os auspícios do Papa São Pio X, deu início em Roma a uma Congregação religiosa feminina destinada a impetrar graças em favor do Sumo Pontífice e dos sacerdotes: a Companhia da Virgem. A missão de fundadora, para a qual Deus chama almas fortes, exigiu dela não pequena disposição de confiar contra todas as aparências de fracasso.
No seu horizonte interior não cabia a desconfiança
Madre Francisca de Jesus, como era chamada em religião, ainda não terminara de alicerçar a obra nascente quando se viu atingida pelo mal de Basedow. Tal enfermidade, da qual veio a falecer, prostrou-a por doze anos e minou-lhe a saúde a ponto de tornar impossível sua permanência à frente da comunidade.
A esse estado de extrema debilidade — a doença abalou, inclusive, seu sistema nervoso —, somaram-se não poucas penúrias materiais que comprometeram seriamente a existência da recém-fundada Congregação. Muitas irmãs, desacoroçoadas pelo infortúnio, abandonavam a vocação, num triste cortejo de deserções. A cada dia o contingente do mosteiro diminuía, sem que a fundadora pudesse abandonar o leito para tomar medidas capazes de reverter o quadro.
Madre Francisca se encontrava imersa em aflitiva situação: além de enferma, via-se diante de uma comunidade depauperada e incapaz de levar às últimas consequências o ideal abraçado outrora com ânimo e fervor. Era a derrocada de seus santos anseios, o fracasso de anos inteiros de integral dedicação!
Sem perder a calma nem se levar pelo amor-próprio, ao qual não dava entrada em sua alma, permanecia ela em sua cela, perseverante na oração. À vista dos insucessos, seu fervor não esmoreceu, nem seu horizonte interior, habituado à contemplação dos mistérios divinos, foi tisnado por um só pensamento de desconfiança em relação ao Deus de Quem, em última análise, emanava a permissão para que tudo isso acontecesse.
De repente, abre-se uma avenida luminosa
Os sofrimentos de Madre Francisca foram particularmente atrozes no dia 28 de outubro de 1922, e quando ela se perguntava se ainda conseguiria suportá-los, lhe sobreveio a consideração dos padecimentos muitíssimo maiores do HomemDeus em Sua Paixão. Nesse momento — fato prodigioso! —, apareceu delineada na parede da cela a Sagrada Face de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado. Ato contínuo, ela se encontrou inundada de paz, acrescida da sobrenatural certeza de estar cumprindo em tudo os desígnios do Redentor e de sua Santa Mãe.
Essa maravilhosa manifestação da bondade divina infundiu na alma da fundadora um aumento de forças para prosseguir com resignação sua via de dores. E não só ela, mas também as demais freiras se sentiram robustecidas, a ponto de superarem o estado de penúria e prestarem naquele convento, por longos anos, muitos serviços à causa de Deus.
Grande e profícua fora a confiança de Madre Francisca, pois a situação que parecia encerrar-se num beco sem saída, abriu-se de repente numa avenida luminosa, de heroísmos, esperanças e realizações. O modo como isso se deu, porém, não consistiu numa sequência de ostensivos triunfos sobre as adversidades, mas em esforços e sacrifícios premiados pelas bênçãos de Deus. Muitas vezes, Ele Se compraz em não retirar por completo as agruras do caminho de seus filhos, mas em pedir deles um novo ato de confiança a cada passo.
Habituemo-nos a ver todas as coisas em Deus
Os cristãos fervorosos que, como Francisca do Rio Negro, se empenham em seguir muito de perto os passos do Cordeiro, oferecem à Igreja um eloquente testemunho do poder da graça sobre as almas. Embora não tenham experimentado a felicidade de contemplar a figura do Mestre caminhando pelas ruas de Cafarnaum, pregando na barca ou curando os enfermos, o intenso comércio com o sobrenatural modela o seu interior segundo a mais perfeita compreensão das palavras proferidas um dia por Jesus em Israel: “Não vos preocupeis com o que é preciso para a vossa vida” (Lc 12, 22), ou ainda: “Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais” (Lc 12, 7).
Ao calor dessas divinas promessas, os justos adquirem a entranhada certeza de estarem orientando suas existências em função de uma realidade toda feita de predileção, mais elevada do que a terrena. Sabemse instrumentos para a exaltação do Criador, mesmo quando não alcançam vislumbrar de imediato a forma em que isso será realizado. Eles parecem repetir, pela alegre aceitação tanto das bonanças como das borrascas, as palavras que Madre Francisca escolheu por sua divisa: “Faça-se! Aleluia!”. 1
Atingir esse heroico grau de abandono à Providência Divina é privilégio de uns poucos, mas todos quantos se consideram discípulos do Bom Pastor devem ter certeza de que Ele nos conduz por caminho seguro (cf. Sl 22, 3), conhece nossas necessidades (cf. Lc 12, 30), e é incomparável nos desígnios a nosso respeito (cf. Sl 39, 6).
Daí que o padre Garrigou-Lagrange, eminente dominicano que foi diretor espiritual e biógrafo da Madre Francisca, nos convide a receber com ânimo generoso todos os acontecimentos da vida presente: “Habituemo-nos pouco a pouco a ver, na penumbra da fé, todas as coisas em Deus: os sucessos agradáveis, como sinal de Sua bondade; os acontecimentos adversos e imprevistos, como um apelo a subir mais alto, como graças ocultas, purificadoras, às vezes muito mais preciosas que as próprias consolações. São Pedro estava mais próximo de Deus quando estendia seus braços para ser crucificado, do que no cume do Tabor”. 2
O exemplo de São Pedro
Almas pode haver que não sintam em si essa generosa disposição interior. A elas cabe aplicar a justa admoestação que, com um timbre de voz perpassado de compaixão, Nosso Senhor fez a São Pedro: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?” (Mt 14, 31).
Mas é importante lembrar-lhes também o quanto o Príncipe dos Apóstolos teve seus impulsos interiores transformados pela ação do Espírito Santo, depois de Pentecostes. Já não se turbava ante as maiores contrariedades, pregava com denodo no Templo (cf. At 3) e escrevia às ovelhas de seu rebanho: “Descarregai sobre Ele todas as vossas preocupações, porque Ele cuida de vós” (I Pd 5, 7).
Renovado pelo sopro do Paráclito, era ele impelido a não contemplar a realidade da vida presente com a pusilanimidade dos dias antigos, mas a descobrir a cada passo — até nos maiores sofrimentos — os desígnios que a benevolência de Cristo lhe reservara: “Se sois ultrajados por causa do nome de Cristo, bem-aventurados sois” (I Pd 4, 14).
Sob esse prisma sobrenatural, de confiança nos desígnios de Deus e na ação do Espírito Santo, a vida humana reveste-se de extraordinário significado, passando a ser como um turíbulo capaz de alçar incenso odorífico ao trono da Santíssima Trindade. E tanto mais alto chegará o sacrifício de louvor, quanto mais confiante for o “sim” da alma aos ditames da Providência: “É quanto exijo dos meus servidores; tal será a prova de que Me amam”, disse o Senhor a Santa Catarina de Sena. 3
Bondade inesgotável de Jesus
Abandonar-se nos braços da Providência constitui uma obra de amor, só realizável por aqueles que se deixam conquistar por Jesus. No decorrer de Sua vida pública, numerosos são os exemplos dos que passavam a esperar do Divino Mestre o rumo para seus destinos, apoiados na bondade inesgotável da qual Ele dava provas.
Ao paralítico estendido no leito, Nosso Senhor deitou um olhar cheio de comiseração, e disse: “Filho, tem confiança, são-te perdoados os pecados” (Mt 9, 2). E em seguida o curou. À mulher enferma, impelida por sua fé a tocar-Lhe a orla do manto, exclamou: “Tem confiança, filha, a tua fé te salvou” (Mt 9, 22).
Também as criancinhas, conduzidas por suas mães, lançam-se nos braços de Cristo e auscultam as pulsações daquele Coração cujas delícias consistem em estar com os filhos dos homens. Mais adiante, encontramos Zaqueu em cima da árvore, disposto a trocar os lucros ilícitos pela amizade de Cristo. E nem sequer os gregos estão alheios a essa presença arrebatadora, pois eles se aproximam de Filipe e lhe imploram: “Queremos ver Jesus!” (Jo 12, 21).
Todos recebem a cura do corpo e do espírito, sentindo-se alvo de uma ternura desconhecida, que dissipa as trevas e afugenta as angústias. Mais ainda, o ímpeto de um amor tão excelente transforma os critérios daquelas almas, trocando a figura de um Senhor ao Qual se serve, pela de um Pai a Quem se ama: “Pai nosso que estais no Céu” (Mt 6, 9).
Pois bem, quem hoje assim se apresenta diante do Redentor, também tem abertas diante de si as portas do seu Coração. Como quando vivia sobre a terra, Ele Se debruça sobre as nossas debilidades e nos trata com essa indizível misericórdia, dando-nos motivo para d’Ele esperar tudo quanto necessitamos, certos de que Quem por nós ofereceu Sua própria vida nada nos negará.
As “armas da luz”
Muitas são as razões para incentivar-nos à confiança. A Eucaristia constitui, certamente, a maior delas, por ser “fonte e centro de toda a vida cristã”, 4 alimento da vida sobrenatural no mundo. Onde houver um tabernáculo, ali estará a origem de toda alegria, a solução de todos os males, a luz para qualquer caminho obscuro.
Quem se aproxima do Santíssimo Sacramento e, mais ainda, quem comunga, recebe uma força espiritual superior às energias humanas, prefigurada pelo pão levado por um Anjo ao profeta, no deserto: “Elias levantou-se, comeu e bebeu e, com o vigor daquela comida, andou quarenta dias e quarenta noites, até Horeb, a montanha de Deus” (I Rs 19, 8). Não sem razão, afirma São Pedro Julião Eymard: “A virtude característica da contemplação da Eucaristia e da Comunhão — união perfeita a Jesus — é a força”. 5
Apesar desse auxílio, a debilidade ainda pode persistir na nossa natureza decaída. Daí que hereges como os albigenses e os jansenistas tenham difundido um sentimento de desespero, dedicando-se a espalhar a crença de ser o pecado um mal irremediável, próprio a nos afastar definitivamente de Deus. Nada mais enganoso! Quem pode sustentar que o Preciosíssimo Sangue derramado no madeiro não é suficiente para expiar todas as nossas faltas?
Na penumbra do confessionário, quando o penitente declina suas culpas ao ministro de Cristo e recebe a absolvição, derramam-se sobre ele, uma vez mais, os méritos do Sacrifício do Mártir do Gólgota, restituindo-lhe a graça, os dons e virtudes tal como ele os possuía no dia do Batismo. Uma paz suave e difícil de ser descrita se segue ao perdão. Tudo foi apagado!
Compadecido ainda da nossa orfandade, e desejando revelar-nos o lado materno de Sua Divindade, o Senhor nos ofereceu o tesouro que Lhe era mais caro: Maria, sua Mãe, cujo poder de intercessão foi assim exaltado por São Bernardo: “Se A segues, não te desviarás; se recorres a Ela, não te desesperarás. Se d’Ela te lembrares, não cairás no erro. Se Ela te sustenta, não te precipitarás. Nada temerás se te protege; se te deixas levar por Ela, não te fatigarás; com seu favor, chegarás a porto”. 6
As “armas da luz” (Rm 13, 12), das quais São Paulo nos recomenda fazer uso, não são apenas essas aqui enunciadas. Enumerá-las é quase impossível; escapam a qualquer cálculo, pertencem à “multiforme graça de Deus” (I Pd 4, 10). Cumprenos, isto sim, recebê-las com proveito e nelas confiar, agradecidos pelo fato de Deus nos conceder muito mais do que pedimos e merecemos: “Exorto-vos a não receberdes a graça de Deus em vão” (II Cor 6, 1).
Regra de ouro nos nossos dias
Atravessamos dias obscuros, inegavelmente. Onde caem nossos olhos, ali pairam o erro, a violência, o egoísmo e o pecado, na maioria das vezes em situações tão complexas a ponto de redundarem em fracasso as melhores iniciativas para revertê-las.
Esta realidade não impede nem dessora a atuação da graça. Pelo contrário, devemos lembrar-nos de que as horas difíceis são também as horas da Divina Providência, nas quais Ela atua no fundo das almas e ali obra prodígios não menores que os narrados pelos Livros Sagrados ou pelos apaixonantes volumes da História da Igreja.
Nos nossos dias, a confiança tende a se afirmar cada vez mais como a regra de ouro, o farol das almas fiéis que não negam seu testemunho de ufania, mas empenham-se em transmitir ao homem de hoje a certeza da bondade de Nosso Senhor. E, junto com ela, a palavra com a qual o Mestre instruiu seus mais íntimos amigos: “Tende confiança! Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33).
1GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. Madre Francisca de Jesus. São Paulo: Tipografia Beneditina Santa Maria, 1940, p.32.
2GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. La Providencia y la confianza en Dios. 2.ed. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1942, p.133.
3SANTA CATARINA DE SENA. Diálogo sobre a Divina Providência. 8.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.222.
4 Lumen Gentium, n.11.
5 SÃO PEDRO JULIãO EYMARD. A Divina Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2002, v.I, p.97.
6 SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Sermo II in Laudibus Virginis Matris. In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 1994, v.II, p.639.
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