Salmos: penhor da salvação

Ir. Maria Cecilia Lins Brandão Veas, EP

Narra o Gênesis que Deus descia todas as tardes, na brisa do fim do crepúsculo, para conversar com Adão. Sucedia, então, um diálogo sublime. De Adão emanavam cânticos e hinos de louvor a Deus, e de Deus um convite a Adão para que desejasse o nec plus ultra, “inebriando-o dia a dia, num processo magnífico, na visão disso, daquilo, daquilo outro, de maneira a Adão ficar sem saber o que dizer”.1 Deparamo-nos, assim, com “o aspecto mais sublime da dignidade humana: a vocação do homem à comunhão com Deus. Este convite que Deus dirige ao homem de dialogar com Ele, começa com a existência humana,” (CEC 27) e não é senão o seu cerne. Partindo desse pressuposto, melhor compreenderemos o papel dos salmos, enquanto verdadeiras orações.

Santa teresinha afirmava que “a oração é um impulso do coração, um simples olhar lançado ao céu, um grito de reconhecimento e de amor no meio da provação ou no meio da alegria.” 2 Desse modo, é através da oração que o homem se comunica com o seu Criador, uma vez que no coração humano está vincado o desejo natural de tender ao Absoluto, como corolário do inestimável dom de haver sido criado “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1, 26). Já no Antigo Testamento, encontramos várias formas de orações, como por exemplo os salmos caracterizados por hinos que expressavam louvores, gratidões, lamentos e pedidos de perdão ao Criador inspirados pelo Divino Espírito Santo, “que intercede em nosso favor com gemidos inefáveis.” (Rm 8, 26)

Veremos a seguir que os salmos cumprem, no seu conjunto, com os cinco requisitos mais importantes expostos por São Tomás 3 para uma perfeita oração: ser confiante, humilde, devota, reta e ordenada.

“Só a confiança, ó Senhor, nos obtém a vossa comiseração.”4 De fato, para maior impetração no atendimento da súplica, deve-se ter uma confiança tão amorosa e humilde que excite a misericórdia de Deus, como está dito: “ele me invocará, e lhe darei resposta.” (Sl 91,15) Por isso, “os que se cansam depois de haver rogado durante um tempo, carecem de humildade ou de confiança; e deste modo não merecem ser escutados. Parece como se pretendêsseis que se vos obedeça no momento vossa oração como se fosse um mandato; não sabeis que Deus resiste aos soberbos e que se compraz nos humildes? Acaso vosso orgulho não vos permite sofrer que vos façam voltar mais de uma vez para a mesma coisa? E ter pouca confiança na bondade de Deus, o desesperar tão pronto, o tomar as menores demoras por desprezos absolutos.”5

Modelos preclaros de constância humilde e confiante são os salmos, nos quais se entrevê a esperança que clama e se eleva aos céus para implorar o auxílio do Todo-Poderoso, por piores que sejam as circunstâncias que rodeiam a alma. Eis porque canta o profeta David: “Piedade de mim, Senhor, pois estou angustiado; definham de tristeza minha vista, meu corpo e minha alma. Pois minha vida se consome entre aflições e meus anos entre gemidos, decaiu pela miséria minha força, meus ossos se consomem (…) mas, eu em Ti espero, Senhor, repito és Tu o meu Deus.’ (Sl 31, 10-11 15) O que haveria de mais belo e atraente aos olhos do Senhor, quanto um coração de um filho cuja confiança é a fina ponta daquela esperança que crepita dentro de si. “É essa confiança que dá forças às nossas almas de caminhar para frente.”6 Ora, assim como a humildade incita a confiança, a confiança proporciona a devoção.

“Correrei pelo caminho de vossos mandamentos, quando dilatareis meu coração.” (Sl 119, 32) Por esta simples forma, canta o salmista o orvalho com o qual o homem experimenta um pedaço do céu: a virtude da devoção. Por ela somos ateados no fogo do amor divino, é apagada a chama da concupiscência e recebe-se um novo alento para agir de acordo com as vias do sobrenatural, como assegura São Tomás: “faz o homem pronto e hábil para toda virtude e o desperta e facilita para bem obrar.” 7

Uma vez possuidora de tão grande benefício, a alma não duvida em pedir o que lhe seja conveniente. Pede-se, na verdade, apenas aquilo que é lícito desejar. Por isso, a oração será retíssima quando se pede ao Senhor as coisas que Ele mesmo incita a pedir. 8 E o que estimula Ele? O desejo de santidade e de união íntima com Ele, de que às coisas terrenas, escolha-se as que dizem respeito às coisas celestes. Assim, vemos claramente expresso no salmo 41. “Assim com a corça suspira pelas águas correntes, suspira minha alma por vós, ó Meu Deus.” (SI 41, 1) Assim como o cervo vai para a fonte das águas, assim, ó Deus, a alma deseja a Ti.

“Que bonita essa comparação: uma fonte que brota; e Deus, que fez brotar tudo do nada! Como isso é majestoso! A fonte é um sinal de Deus. Assim como o cervo que corre velozmente, encontra uma fonte e pára para se dessedentar, assim nossa alma, correndo pelos caminhos da vida, tem sede de Deus. E nossa alma pára diante de Deus e bebe.”9

Desse modo, inspirados pelo Espírito Santo, os salmos são escrínios e depositários da Revelação, contendo o resumo da realidade e da experiência religiosa do povo israelita no Antigo Testamento, e que dignamente merecem ser perpetuados na Igreja. Eles são também o cerne de nossa vida, posto que essas eloquentes preces elevadas até Deus são antes de tudo o apoio de cada dia para nunca perdermos de vista nosso destino eterno.

1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Adão homem dos homens, no qual existia a raiz de todos os homens Palestra. São Paulo, 8 jul. 1987. (Arquivo IFTE).
2 Santa Teresa do Menino Jesus. Manuscritos autobiográficos. C 25r, apud CATECISMO da Igreja Católica. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 658.
3 Cf. SAO TOMÁS DE AQUINO. A luz da fé. Lisboa: Verbo, 2002, p.87.
4 SÃO BERNARDO, apud SANTO AFONSO MARIA DE LIGORIO. A oração: o grande meio para alcançarmos de Deus a salvação. São Paulo: Santuário, 1987, p. 71.
5 São Cláudio de la Colombière. El abandono confiado a la Divina Providencia.
6 CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. A Europa vista pelo prisma de um menino inocente. In: Dr. Plinio. São Paulo: Ano II, n. 17, ago. 1999, p. 2.
7 AQUINO, Tomás de, In: São Pedro de Alcântara. Tratado da oração e da meditação. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p.1 13.
8 Cf SÃO TOMÁS, opus cit. p. 88.
9 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. As realidades visíveis, sinais de realidades invisíveis. In: Dr. Plinio. São Paulo: Ano V, n. 49, abr. 2002, p. 25.

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