A palavra de Deus em música – continuação
Irmã Kyla Mary Anne MacDonald, EP
Um novo impulso à unificação da música sacra
“Foi enquanto considerava o fascínio exercido pela música profana que Gregório foi levado a se perguntar se ele não poderia, como Davi, consagrar a música ao serviço de Deus. Uma noite, teve uma visão na qual a Igreja lhe aparecia sob a forma de uma musa, escrevendo suas melodias e reunindo seus filhos sob as dobras de seu manto. Sobre este manto estava escrita a arte da música, com todas as formas de seus tons, notas, neumas, e vários compassos e harmonias. Ele rezou para que Deus lhe desse o poder de recopilar tudo o que tinha visto. Ao acordar, uma pomba apareceu e ditou-lhe as composições musicais com as quais ele enriqueceu a Igreja”. 6
São Gregório usou este especial dom artístico para proporcionar um complemento decisivo ao trabalho de outros que o antecederam na música litúrgica — notadamente Santo Ambrósio7 —, dando uma harmonia final e unificada ao canto da Igreja em Roma, e impulsionando a sua implementação universal em toda a Europa Ocidental, causa que seria levada adiante por grandes homens depois dele, em particular Carlos Magno.
O assunto música sempre foi importante para a Igreja. Toda a Idade Média — bem como o mundo antigo antes dela — foi marcada por um grande interesse pela compreensão da influência dessa arte sobre a alma. O canto gregoriano, que atingiu seu auge por volta do século XIII, representa o fruto de um longo processo de explicitação e de aprimoramento.
“Canticum novum” na Igreja
Desde os tempos antigos, o povo louvava a divindade com cânticos. Na verdade, observa o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, a alma humana “procura a música para exprimir seus mais altos anelos, seus mais altos desejos, suas mais altas expressões”. 8 Santa Hildegarda de Bingen reconhece esta inclinação, afirmando que, em estado de perfeição original, Adão no Paraíso, antes da queda, cantava em vez de falar, e em sua voz “havia o som de todas as harmonias e suavidades de toda a arte musical”. 9
Era natural que com o estabelecimento do Cristianismo um novo cântico viesse caracterizar o culto litúrgico da Igreja. Os primeiros patrocinadores da salmodia e da hinologia cristãs não olhavam senão para o Homem-Deus como o inspirador deste canticum novum, pois, após a Última Ceia, “o próprio Senhor, um professor nas palavras e mestre nos fatos, […] saiu do Monte das Oliveiras com os discípulos, depois de cantar um hino”.110
Quando se deu a assinatura do Edito de Milão, pelo Imperador Constantino, foi permitido que o culto público dos cristãos florescesse e os fiéis encontraram no canto uma bela maneira de expressar e inspirar o amor a Deus, a contrição, as súplicas, ajudando a alma a louvar o Criador.
Contribuições de três mundos antigos — a teoria musical grega, a língua e as regras da métrica literária romanas e os livros sagrados dos judeus — se uniram para desenvolver uma arte sacra inteiramente nova, visando ajudar os textos sagrados a inspirar os corações daqueles que os ouviam.
Um elo entre o mundo dos sentidos e do espírito
Durante os primeiros séculos do Cristianismo, os Padres da Igreja viram na música e, sobretudo, no canto, um elo entre o mundo dos sentidos e o do espírito que poderia ajudar o homem no processo de transcendência espiritual. A esse respeito, as palavras de São João Crisóstomo são significativas: “Nada desperta tanto a alma, dando-lhe asas, deixando-a livre da terra, liberando-a da prisão do corpo, ensinando-a amar a sabedoria e rejeitar todas as coisas desta vida, como a melodia concordante e o cântico sacro”. 11
Misteriosa era, porém, a questão de como a palavra cantada obtinha maior entrada na alma do que a palavra falada. Santo Agostinho observa: “sinto que o nosso espírito se move mais religiosa e ardentemente para a chama da piedade com aquelas letras sacras, quando assim são cantadas, do que se não fossem cantadas deste modo”; refletindo mais sobre este mistério, não é capaz de explicá-lo inteiramente: “todos os afetos do nosso espírito, cada um segundo a sua diversidade, têm na voz e no canto as suas próprias medidas, não sabendo eu qual é a oculta afinidade com essas melodias que os desperta”. 12
A perspectiva medieval da música é também demonstrada por Boécio: “a música é de tal forma parte de nossa natureza que nós não podemos passar sem ela, mesmo que queiramos”. 13 Para ele, os ouvidos são vistos como uma vereda direta para a alma, a qual é altamente suscetível às influências da música. 14
Parte da eficácia da música na conquista do acesso à alma foi atribuída à sua inata qualidade de agradar. Ela eleva a expressividade das palavras no cântico, tornando-as de mais fácil recordação ao ouvinte. São Nicetas chamava a música sacra de “remédio, suficientemente poderoso na cura das feridas do pecado, embora doce o suficiente ao paladar, por sua virtude. Por isso, quando um salmo é cantado, é doce ao ouvido. Penetra na alma porque é agradável. É facilmente retido, se é repetido com frequência”. 15
É ainda Santo Agostinho quem testemunha ter sentido, em si, tais benefícios, referindo-se à música da Igreja como uma das mais poderosas influências para sua conversão. Suas palavras uma vez mais sublinham como a alma é iluminada pelo que captam os ouvidos: “Quanto chorei ouvindo vossos hinos, vossos cânticos, os acentos suaves das harmonias que ecoavam em vossa Igreja! Que emoção me causavam! Fluíam em meu ouvido, destilando a verdade em meu coração”. 16
Antes da difusão dos livros, quando a fé literalmente vinha através do ouvido (cf. Rm 10, 17), os cânticos eram também importantes instrumentos didáticos de doutrina. Santo Atanásio, no Oriente, por exemplo, e Santo Hilário de Poitiers, no Ocidente, fortaleceram as populações, contra os males do arianismo, escrevendo hinos os quais refutavam seus erros. Deste modo, as verdades da Fé eram fácil e afetuosamente assimiladas, atingindo um público muito maior do que as palavras escritas, porque, como ressalta a historiadora Régine Pernoud, “naquele tempo, se nem todos aprendiam a ler, todos aprendiam a cantar”. 17
Defensor do valor pedagógico da arte sacra, São Gregório Magno assim escreveu para dissuadir as atividades iconoclastas de um de seus bispos: “O que a Escritura é para os letrados, as imagens são para os ignorantes; […] elas são para o povo a sua leitura”. 18 Porém, em terras onde apenas começavam a experimentar a Civilização Cristã, o esplendor dos vitrais e outras artes visuais tardariam em aparecer. Discerniu ele, então, estarem as melodias do canto gregoriano preparadas para fluir sobre as almas de seus ouvintes com toda sua grandeza, exercendo o mesmo tipo de influência educativa que as outras artes.
Continua no próximo post
6 DONAHOE, Daniel Joseph. Early Christian Hymns: Translations of the Verses of the most notable Latin writers of the Early and Middle Ages. New York: Grafton, 1908, p.88.
7 Atribui-se a Santo Ambrósio a primeira sistematização da música da Igreja, a composição de numerosos hinos e a origem dos quatro primeiros modos, conhecidos como os “autênticos” modos. A tradição também atribui a adição dos outros quatro modos, conhecidos como os modos “plagais” a São Gregório, e nestes oito modos ou escalas foi composta toda a música gregoriana da Igreja (Cf. TERRY, Richard R. Catholic Church Music. London: Greening, 1907, p.54).
8 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 13 jun. 1982.
9 SANTA HILDEGARDA DE BINGEN. Epistolarum Liber. Ep. XLVII: ML 197, 220.
10 SÃO NICETAS DE REMESIANA. Opusculum de psalmodiae bono. Op.II, c.3: ML 68, 373.
11 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Expositio in Psalmos. In Psalmum XLI, n.1: MG 55, 156.
12 SANTO AGOSTINHO. Confessionum. L.X, c.33, n.49: ML 32, 799-800.
13 BOÉCIO. De Musica. L.I, c.1: ML 63, 1171.
14 Cf. Idem, 1169.
15 SÃO NICETAS DE REMESIANA, op.cit., c.1, 372.
16 SANTO AGOSTINHO, op.cit., L.9, c.6, n.14, 769.
17 PERNOUD, Régine. Pour en finir avec le Moyen Age. Paris: De Seuil, 1977, p.54.
18 SÃO GREGÓRIO I. Registri Epistolarum. L.XI, Epist.XIII: ML 77, 1128.