Nossa Senhora de Vallarpadam
Angela Maria Tomé, EP
Realizadas sob o bafejo do espírito religioso do povo ibérico, que acabara de reconquistar a Península após oito séculos de lutas, as grandes navegações podem ser consideradas continuação desse ousado feito. O mesmo ideal que movia os fundadores daqueles reinos impulsionou a missão de descobrir novos caminhos para a Cruz de Cristo e agregar à Igreja Católica novas gentes, enriquecendo-a com a multiplicidade de dons das diferentes nações.
Assim, os traços cristãos dos que viajavam a bordo das caravelas podem ser reconhecidos nas terras por eles colonizadas, da mesma forma como se notam na face dos netos as linhas fisionômicas dos avós. Constata-se agradavelmente isso quando se conhece a misteriosa Índia. Em meio à exuberante riqueza cultural desse país, a presença católica e portuguesa permanece como uma joia incrustada num turbante: enriquece o elemento natural desse povo ao sobrenaturalizar sua sadia tendência para o maravilhoso.
Milagrosa recuperação de um quadro de Nossa Senhora
No vasto e sinuoso estuário formado por vários rios que deságuam no Oceano Índico junto à cidade de Cochim, localiza-se a ilha de Vallarpadam. Ali os missionários que acompanhavam as expedições erigiram em 1524 uma igreja dedicada ao Divino Espírito Santo e, nesse mesmo ano, mercadores portugueses, encabeçados pelo valoroso Vasco da Gama, entronizaram no novo templo um quadro de Nossa Senhora que o famoso navegante lusitano levara consigo para a expedição.
A pintura, com aproximadamente um metro de altura por setenta centímetros de largura, representa a Mãe de Deus com seu Divino Filho ao colo sob a invocação de Nossa Senhora do Resgate, ou das Mercês. Não é de se estranhar que esta devoção estivesse tão viva no espírito dos portugueses, pois, no início do século XVI havia ainda europeus cativos na África, e a Ordem dos Mercedários tomara a si a missão de resgatá-los.
Em 1676, uma arrasadora enchente destruiu o templo, e a impetuosa torrente levou para o Lago Vembanad o venerável quadro. Vários pescadores da região viram-no boiando nas águas e tentaram resgatá-lo, mas sem êxito: ele se afastava inexplicavelmente das mãos que se estendiam para pegá-lo. Nesse momento Paliyath Raman Valiyachan, Primeiro-Ministro do Marajá de Cochim, vinha cruzando o lago. Informado do que acontecia, fez aproximar o seu barco do quadro e, na primeira tentativa, conseguiu recuperar o sagrado objeto.
Reconhecendo nesse fato um sorriso da Mãe de Jesus, Paliyath concedeu na mesma ilha os terrenos necessários para a reconstrução da igreja. Até hoje uma lamparina doada por ele arde dia e noite no templo em sua memória.
Servos da Virgem Maria para sempre
Um prodigioso fato ocorrido em 1752 tornou famoso esse Santuário em toda a região. A senhora Meenakshiyamma — pertencente à nobre família Palliveetil, da casta guerreira dos Nair — atravessava num bote o grande lago, levando seu filhinho. Armou-se subitamente uma tempestade e as águas se agitaram, pondo em sério risco a frágil embarcação. Ante o iminente perigo de soçobrar, ela prometeu à Senhora de Vallarpadam, que, caso os preservasse, eles se tornariam seus adimas, ou seja, servos, até a morte.
Contudo, o pequeno barco afundou. Porém, três dias depois, o pároco do Santuário, padre Miguel Corrêa, teve um sonho no qual a Santíssima Virgem lhe ordenava “salvar aquela sua serva” que estava no fundo do lago. Dirigiu-se sem tardança com alguns pescadores ao local indicado pela celestial Rainha. Lá eles atiraram a rede e resgataram vivas a senhora e a criança! Convertida à Religião Católica, ela, de fato, se mudou com seu filho para o pátio do Santuário e serviu fielmente sua Senhora até a morte.
Mariamma e Jesudas, nomes que receberam no Batismo, faziam apostolado junto aos peregrinos, incitando-os a também servirem à Senhora que os salvara. Todos os membros da família Palliveetil se converteram, prometeram ser adimas da Virgem Maria para sempre e, ainda em nossos dias, moram nas cercanias do Santuário.
Este fato talvez esteja na raiz do costume até hoje mantido pelos peregrinos de varrer o pátio do santuário, com suas típicas vassouras indianas, em sinal de gratidão à Senhora de Vallarpadam.
Pessoas de todas as castas e religiões
A partir desse milagre, a devoção à Senhora do Resgate espalhou-se, e pessoas de todas as castas e credos visitam o Santuário, hoje Basílica. Vários Papas a enriqueceram com privilégios especiais. Ali, a Mãe de Deus atrai e converte numerosos visitantes de outras religiões, aos quais distribui generosamente suas graças. Os pescadores do grande lago a Ela recorrem para obter a bênção de seus barcos e redes; os viajantes pedem-Lhe proteção nas viagens; os casais sem filhos ali vão suplicar-Lhe a graça de tê-los. É um desfile contínuo de necessitados!
Quem quiser ver brilhar na venerável Basílica a alma indiana, visite-a no mês de setembro, à noite. É no dia 24 de setembro a grande festa. Numa demonstração de piedade e bom gosto, os engenhosos adimas da Senhora do Resgate a transformam numa igreja do Paraíso, ornamentando-a com luzes coloridas. Vista assim à distância, desde algum ponto do Lago Vembanad, ela reluz como a joia no turbante.
Revista Arautos set 2014