A misericórdia divina, tábua de salvação (cont)
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Ir Mariana Morazzani Arráiz, EP
O Filho de Deus nos colocou à direita do Pai
Ao longo da História, observamos essa constante: às faltas cometidas, Deus responde com requintes de clemência; aos grandes desastres provocados pela infidelidade de alguns, sucedem-se restaurações cuja beleza excede à do plano anterior; invariavelmente os desígnios de Deus se cumprem, sem que Sua glória seja manchada ou diminuída.
Tal é o caso do pecado do primeiro homem no Paraíso, cujos estigmas todos nós carregamos, e que trouxe como consequência a privação da graça e do Céu para ele e sua descendência. E qual a resposta divina? Elevou a alturas inimagináveis a natureza humana decaída, ao enviar ao mundo o Seu Unigênito, o qual, “depois de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da Majestade no mais alto dos céus” (Hb 1, 3b), conforme lhe fora dito: “Senta-Te à Minha direita” (Sl 109, 1).
A este respeito afirma São Leão Magno, em um de seus sermões sobre a Ascensão: “E, em verdade, grande e inefável motivo de júbilo era elevar-se, na presença duma santa multidão, uma natureza humana acima da dignidade de todas as criaturas celestes, ultrapassar as ordens angélicas e subir mais alto que os Arcanjos, e nem assim atingir o termo de sua ascensão a não ser quando, assentada junto do eterno Pai, fosse associada ao trono de glória dAquele a cuja natureza estava unida no Filho. […] Hoje não só fomos firmados como possuidores do Paraíso, mas até penetramos com Cristo no mais alto dos Céus, tendo obtido, pela inefável graça de Cristo, muito mais do que perdêramos por inveja do diabo. Aqueles que o virulento inimigo expulsou da felicidade da habitação primitiva, o Filho de Deus, tendo-os incorporado a Si, colocou-os à direita do Pai”. 8
Este é o sentido mais profundo das palavras que a Liturgia canta na Vigília Pascal, ao celebrar a ressurreição do Senhor: “Ó pecado de Adão indispensável, pois o Cristo o dissolve em Seu amor; ó culpa tão feliz que há merecido a graça de um tão grande Redentor!”. 9 Frase desconcertante à primeira vista, mas a cuja realidade não se pode objetar, e que se conjuga admiravelmente com a afirmação de São Paulo: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20b).
Entretanto, não Se limitou o Pai a enviar, na plenitude dos tempos, o Seu Filho amado para resgatar os homens da vil escravidão do pecado. “Após a morte de Jesus Cristo — afirma o Pe. Garrigou-Lagrange — bastaria que nossas almas fossem vivificadas e conservadas por graças interiores, mas a divina Misericórdia deu-nos a Eucaristia. No dia de Pentecostes, renovado para cada um de nós pelo Sacramento da Crisma, o Espírito Santo veio habitar em nós. Após nossas reiteradas quedas pessoais, encontramos a absolvição, cada vez que nossa alma deseja sinceramente voltar a Deus. Toda a Religião Cristã é a história das misericórdias do Senhor”. 10
E ainda, nos derradeiros instantes de sua Paixão, querendo dissipar qualquer temor em relação à Sua excelsa majestade, quis o Redentor entregar a todos os homens, ali representados na pessoa do Apóstolo João, uma Mãe que intercedesse por eles em suas necessidades, como outrora suplicara em favor dos noivos, nas bodas de Caná: “Eles já não têm vinho” (Jo 2, 3b). Que legado mais precioso poderia nos ter dado do que nos deixar Maria, Aquela que escolhera desde toda a eternidade para ser Sua Mãe?
“Desejo salvar todas as almas”
No decorrer dos séculos, não deixou o Senhor de prodigalizar manifestações de Sua misericórdia. Seria por demais extenso enumerá-las. Foram mensagens com as quais a Providência Divina quis chamar o mundo à conversão, procurando tocar os corações por meio da ternura de um Deus ébrio de amor pelas criaturas.
Pensemos, por exemplo, nas aparições de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, no século XVII, pedindo-lhe que propagasse a devoção a Seu Sagrado Coração.
Bem mais próximo de nós, na primeira metade do século passado, Santa Maria Faustina Kowalska recebia dos lábios de Jesus o apelo que levou o Papa João Paulo II a instituir a festa da Divina Misericórdia no primeiro domingo depois da Páscoa, de acordo com o desejo expresso pelo próprio Senhor.
Disse-lhe Ele, em fevereiro de 1937: “As almas se perdem, apesar de Minha amarga Paixão. Ofereço-lhes a última tábua de salvação, ou seja, a Festa de Minha Misericórdia. Se não adorarem Minha misericórdia, morrerão por toda a eternidade. Secretária de Minha misericórdia, escreve, fala às almas desta grande misericórdia, pois está próximo o dia terrível, o dia de Minha justiça”. 11
Em outra ocasião, o Divino Mensageiro revelava-lhe claramente sua especial predileção pelos mais miseráveis: “Minha filha, escreve que, quanto maior é a miséria de uma alma, tanto maior é o direito que tem à Minha misericórdia e [convida] todas as almas a confiar no inconcebível abismo de Minha misericórdia, pois desejo salvá-las todas”. 12
Nestas comovedoras palavras discernimos o anseio de Jesus, de livrar as almas de suas fraquezas e pecados. Todos nós somos como um filho doente que atrai sobre si as atenções do pai, que conhece suas necessidades e deseja aliviá-lo do mal; ou uma ovelha desgarrada, por amor da qual o pastor não duvida em deixar as outras noventa e nove na montanha para ir à sua procura (cf. Mt 18, 12). Coloquemos, portanto, toda a nossa confiança no divino Médico e usemos do eficaz remédio que Ele nos oferece.
8 Sermo 1 de Ascensione, 4. In: LEONIS MAGNUS. Sermões. Trad. Sérgio José Schirato e outros. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 171.
9 Proclamação da Páscoa – Vigília Pascal.
10 GARRIGOU-LAGRANGE, Op. cit., pp. 181-182.
11 KOWALSKA, María Faustina. Diario. La Divina Misericordia en mi alma. Trad. Eva Bylicka. Granada: Levántate, 2003, p. 377.
12 KOWALSKA, Op. cit., p. 429.
Revista Arautos do Evangelho – Abril 2009