A misericórdia divina, tábua de salvação

Ir Mariana Morazzani Arráiz, EP

No Antigo Testamento, as manifestações da onipotência de Deus tinham um caráter marcadamente justiceiro, visando incutir nas almas o temor e o respeito. Assim se deu, por exemplo, quando foram entregues a Moisés as tábuas da Lei sobre o monte Sinai: “Na manhã do terceiro dia, houve um estrondo de trovões e de relâmpagos; uma espessa nuvem cobria a montanha e o som da trombeta soou com força. Toda a multidão que estava no acampamento tremia. […] Todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor tinha descido sobre ele no meio de chamas; o fumo que subia do monte era como a fumaça de uma fornalha, e toda a montanha tremia com violência” (Ex 19, 16.18).

Para alcançar o perdão dos pecados, os homens deviam repará-los por meio de uma vida de penitência; e, com frequência, sentiam pesar sobre si, ao menos em parte, o duro castigo imposto por suas culpas. Tal é o caso de Moisés, o grande legislador de Israel, a quem a Escritura elogia como o mais humilde dos homens. Por uma única infidelidade, viu fecharem-se diante dele as portas da Terra Prometida e pôde apenas contemplá-la do alto do monte Nebo (cf. Dt 32, 4852). Circunstância semelhante é a do rei Davi, cuja falta acarretou-lhe, ao longo de seus últimos anos de vida, grandes dissabores oriundos do interior de sua própria família (cf. II Sm 15ss; I Rs 1). E cujo arrependimento exemplar o levou a compor os insuperáveis Salmos Penitenciais.

Jesus trouxe à Terra a era da misericórdia

De modo diverso, ao descer à Terra e encarnar-Se no seio virginal de Maria, quis o Filho de Deus atrair-nos pela bondade de Seu Coração: “Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo por Ele, seja salvo” (Jo 3, 17).

Por meio de exemplo de vida, conselhos e parábolas, instruiu os homens — habituados até então à lei de Talião — acerca do dever de perdoarem-se mutuamente as ofensas e se compadecerem dos males alheios. Com o arrebatador modelo de sua conduta, ensinou a acolher os pecadores arrependidos: “Filho, perdoados te são os pecados” (Mc 2, 5); ou então: “Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar” (Jo 8, 11b).

A sobrenatural influência que Jesus exercia sobre seus discípulos obteve a transformação radical de seus corações. Assim, por exemplo, os filhos de Zebedeu, aos quais Ele mesmo dera o nome de Boanerges, “filhos do trovão” (cf. Mc 3, 17), tornaram-se espelhos perfeitos da mansidão de seu Mestre, a ponto de João ter merecido o título de Apóstolo do Amor.

As próprias disputas com os fariseus, nas quais o Divino Mestre mostra-Se de uma forte intransigência, são outras tantas manifestações desse Seu desejo de converter todos, inclusive aquelas almas cegadas pela malícia das paixões. E suas lágrimas sobre Jerusalém, a cidade onde seria crucificado, são o eloquente testemunho da dor do Homem-Deus ao constatar a rejeição de que seria objeto por parte daquela geração e de tantas outras ao longo dos séculos. Tudo no Salvador convidava os homens à confiança e ao abandono nas mãos da Providência, na certeza de serem acolhidos com a benignidade de um Pai ou de um Amigo. O renomado teólogo dominicano Pe. Garrigou-Lagrange assim comenta: “O Evangelho inteiro é a história das misericórdias de Deus em favor das almas, por mais afastadas que estejam dEle, como a Samaritana, Madalena, Zaqueu, o bom ladrão; em favor de nós todos, por quem o Pai entregou Seu Filho como vítima de expiação”. 1

Quando “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14), começou uma nova época. Jesus fundou Sua Igreja, instituiu os sacramentos e, pela efusão de Seu Preciosíssimo Sangue, trouxe à Terra uma nova perspectiva de relações do Criador com a humanidade e dos homens entre si.

A era da Lei havia terminado. A misericórdia vencera a justiça.

Condição absoluta para a salvação da nossa alma

A misericórdia é definida por Santo Agostinho como “a compaixão do nosso coração pela miséria alheia, que nos leva a socorrê-la, se pudermos”. 2

Exercitar esta virtude não é dever apenas dos homens que desejam a perfeição. Pelo contrário, Jesus ordenou que todos a pratiquem, afirmando categoricamente: “Sede misericordiosos”, e propondo, a seguir, o supremo exemplo do Pai: “como também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). Usar de misericórdia é condição absoluta para obter o perdão dos pecados e a salvação da própria alma, como diz o Evangelho em outra passagem: “Se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará” (Mt 6, 15).

Mais ainda, ensina-nos São Tomás que “em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes, porque é próprio dela repartir-se com os outros e, o que é mais, socorrer-lhes as deficiências”. 3 Pouco adiante, afirma ele: “Toda a vida cristã se resume na misericórdia, quanto às obras externas”. 4 De outro lado, a mencionada passagem de São Lucas: “Sede misericordiosos”, São Mateus a escreve em termos diferentes, mas com idêntico sentido: “Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Ou seja, o cristão deve procurar ser perfeito como o é o próprio Deus, mas só atingirá este grau supremo se praticar a virtude da misericórdia.

À primeira vista, isto nos parece extremamente difícil, e até impossível. Como poderemos nós, pobres criaturas, nos assemelharmos a um Deus infinitamente superior, cujas virtudes são a própria substância de Seu Ser?

Não nos esqueçamos, porém, que o mesmo Senhor afirmou: “Meu jugo é suave e Meu fardo é leve” (Mt 11, 30). Nenhuma virtude pode ser praticada de modo estável pelo puro esforço de nossa natureza. Mas com o auxílio da graça divina tornamo-nos capazes de imitar a Deus e de sermos espelhos da perfeição que é Ele por essência.

Pela misericórdia, Deus manifesta Sua onipotência

A palavra compaixão — do latim com-passio, “padecer com” — denota certa tristeza ou sofrimento por parte daquele que se debruça sobre o miserável. Deus, porém, ao apiedar-Se de nossas misérias, não experimenta a menor tristeza, uma vez que Ele é a Suma Felicidade. Nesse sentido, afirma São Tomás: “Não convém a Deus entristecer-Se com a miséria de outro, mas Lhe convém, ao máximo, fazer cessar essa miséria, se por miséria entendemos qualquer deficiência”. 5

E em outra passagem, o Doutor Angélico ressalta que através da misericórdia o Criador patenteia o Seu poder: “Ser misericordioso é próprio de Deus, e é principalmente pela misericórdia que Ele manifesta Sua onipotência”. 6

O Salmo 102 nos oferece uma belíssima síntese das disposições de Deus em relação ao pecador penitente, muito diferentes dos sentimentos de ódio e vingança comuns às almas egoístas e arredias à graça: “O Senhor é bom e misericordioso, lento para a cólera e cheio de clemência. Ele não está sempre a repreender, nem eterno é o Seu ressentimento. Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos castiga em proporção de nossas faltas, porque tanto os céus distam da terra quanto a Sua misericórdia é grande para aqueles que O temem; tanto o oriente dista do ocidente quanto Ele afasta de nós nossos pecados” (Sl 102, 8-12).

Deus como que necessita de nossa fragilidade e miséria

A consideração da misericórdia divina deve nos encher de confiança e de enlevo para com Deus: nossos pecados, por mais graves e numerosos que sejam, não conseguirão esgotar Sua bondade ou exaurir Sua paciência.

Pelo contrário, cometida a falta, Ele o mais das vezes não envia o castigo de imediato, mas aguarda, à semelhança do pai do Filho Pródigo, na esperança de que o infeliz transviado retome o caminho da casa paterna. E quando o avista ao longe, corre-lhe ao encontro, movido de compaixão, lança-se ao seu pescoço e beija-o com ternura, sem mesmo dar ouvidos aos protestos de penitência do faltoso (cf. Lc 15, 11-24).

Infinitamente superior àquele bom pai, Deus não só usa de generosidade, retardando uma intervenção definitiva de Sua justiça, mas cria Ele mesmo as graças necessárias para estimular as consciências e converter os pecadores mais empedernidos. “Quem tão longânime — exclama Santo Agostinho —, quem tão abundante em misericórdias? Pecamos e vivemos; aumentam os pecados e vai-se prolongando a nossa vida; blasfema-se todos os dias, e o sol continua nascendo sobre bons e maus. Por todos os lados convida-nos à correção, por todas as partes, à penitência, falando-nos por meio dos benefícios das criaturas, concedendo-nos tempo para viver, chamando-nos pela palavra do pregador, por nossos pensamentos íntimos, pelo açoite dos castigos, pela misericórdia do consolo”. 7

Para usar uma linguagem analógica, dir-se-ia que Deus necessita de nossa fragilidade e miséria para dar vazão aos transbordamentos de bondade que brotam de suas “entranhas de misericórdia” (Lc 1, 78). Se todos os homens fossem fiéis à graça e exímios cumpridores dos Mandamentos, sem jamais se desviar ou cair, os tesouros da misericórdia divina ficariam para sempre recolhidos nos esplendores do Padre Eterno, desconhecidos dos Anjos, ignorados pelos justos, e este aspecto tão essencial de Sua glória deixaria de brilhar na ordem da criação.

Continua no próximo post

1 GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. Les perfections divines, extrait de l’ouvrage « Dieu, son existence et sa nature ». 4 ed. Paris: Gabriel Beauchesne, 1936, p. 176.
2 Suma Teológica II-II, q. 30, a. 1.
3 Idem, II-II, q. 30, a. 4. Resp.
4 Idem, II-II, q. 30, a. 4. ad 2.
5 Idem, I, q. 21 a. 3.
6 Cf. Suma Teológica II-II, q. 30, a. 4. Resp.
7 AUGUSTINUS, Sanctus. Enarrationes in Psalmos. Ps. 102, 16 (PL 36, 1330).

One response to “A misericórdia divina, tábua de salvação”

  1. Agradeço a Deus por tao maravilhoso e esclarecedor texto ,poie atraves deste abençoado si que tenho aprendido e tenho compartilhado mensagens tão edificantes. Muito obriga a esta maravilhosa equipe e que Deus os abençoe!

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