Bem-aventurados os que choram

Ir. Letícia Gonçalves de Sousa, EP

Ao longo da história, Deus quis revelar e consignar nas Sagradas Escrituras não só sua divindade, mas também o modo de como devemos buscar a santidade; quer seja pela inocência, quer seja pela penitência.

Antes do pecado original, reinou a via da inocência. Adão e Eva, no paraíso, estando na graça primeva em que Deus os tinha criado, “ eram inocentes e tinham em si, em gérmen e raiz, todas as qualidades que o gênero humano possuiria, até o fim. Eles eram, portanto, inteligentíssimos, inocentíssimos, retíssimos, ‘pulquérrimos’, distintíssimos, nobilíssimos, autoritários, amenos e gentis”. 1 Todavia, neste paraíso de inocência, não passando pela prova permitida pelo Altíssimo e caindo no pecado, o homem perdeu o estado de graça: o paraíso da alma. Começou, assim, uma vida de contradição, de luta e de sofrimento. O homem percebeu que já não governava mais a si mesmo. A vida terrena, para a grande maioria dos homens, passou a ser uma via de penitência.

Na lei antiga, ainda sem a existência da graça cristã, podemos notar facilmente a presença de uma educação divina. Por exemplo, nos Salmos, um dos livros sapienciais e poéticos do Antigo Testamento, encontram-se os salmos penitenciais que são “um canto a Deus, no qual o autor exprime a sua penitência. E a penitência pressupõe que ele pecou; que, depois de ter pecado, se arrependeu; e que, uma vez vitorioso nele esse sentimento de arrependimento, ele reflete sobre a falta cometida”. 2 Este será o ponto no qual nos deteremos, visando a via da penitência.

O rei Davi, o escolhido do Senhor, um homem segundo o seu coração, inocente e guiado pelo Espírito, seguia a voz onipotente de Deus. Sob a ação da graça, fazia grandes prodígios. Contudo, há horas na vida de um homem em que ele deve fazer esforço, lutar para retribuir a Deus, com a glória de um combatente, as benevolências dadas por seu Criador.

Nesse momento, Davi prevaricou. Caiu nos pecados de adultério e assassinato. Mas “o Senhor pune o filho a quem muito estima” (Pr 3, 12) Tendo sido repreendido, Davi se arrependeu, bateu no peito, chorou seus pecados e ,como pedido de perdão, compôs os salmos penitencias.

“Bem- aventurados os que choram porque serão consolados” (Mt 5, 4). Há uma consonância entre os salmos penitenciais e as bem- aventuranças que é o elemento para a contrição perfeita: a santa tristeza e o arrependimento das faltas cometidas por amor perfeito a Deus e uma confiança na Providência Divina.

O salmista sentiu o peso de seu pecado porque a consciência o revelou. Dirigiu-se a Deus com um grito de pedido de auxílio ‘tende misericórdia de mim’ (Cf. Sl 50, 3), apoiando-se não em sua inocência, senão na bondade e na imensa misericórdia de Deus […] E o pedido do salmista vai mais além de um simples pedido de perdão; suplica que Deus não o castigue pelo pecado. Roga a Deus que, mediante um ato de criação, o renove no mais íntimo do seu ser de forma que possa permanecer na presença de Deus e gozar da vida que Ele possui e concede.3

“Minhas culpas se elevaram acima de minha cabeça, como pesado fardo me oprimem em demasia.” (Sl 37, 5). Este canto a Deus é categórico, exprime com energia o mal que há no pecado e o arrependimento intenso mostra a autêntica contrição. “Lavai-me todo inteiro do pecado e apagai completamente a minha culpa”. (Cf. Sl 50, 4). O verbo apagar nos recorda a função de um apagador utilizado para eliminar o que se está escrito num quadro-negro. Nele pode estar o exame de acusações contra o pecador, contudo, se alguém passar o apagador, o giz se desfaz em pó. Assim Deus age com quem se arrepende. Pecou, mas se o Altíssimo ‘passar o apagador’, sua alma ficará límpida como se não tivesse pecado4.

“Criai em mim um coração que seja puro, dai-me de novo o espírito decidido. Não me afasteis de Vossa face, nem retireis de mim o vosso Santo Espírito” (Cf. Sl 50,12) Estas palavras do salmista nos remonta com exatidão àquelas proferidas pelo Divino Mestre no Sermão da Montanha: “Bem- aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”(Mt 5, 8).

Entretanto, aquele que, pela falta cometida, tornou seu coração um abismo sem fundo de maldade, não é digno de contemplar o mar infinito da perfeição. “Se do inferno se pudesse tirar o pecado, o inferno não seria mais inferno; e, caso, no Paraíso celeste, se pudesse introduzir o pecado, o Paraíso não seria mais Paraíso”. 5 Ora, para ver a Deus e gozar da visão beatífica, é necessário ter um coração puro, um olho límpido, e uma alma de cristal; seja ela virginal pela via de inocência ou como uma preciosa ametista pela via da penitência.

Entra agora tu em ti mesmo, e examina bem o teu coração, talvez oculto não menos aos outros que a ti mesmo, e poderá ser que aches nele todas estas faltas. Nas ocasiões quão facilmente te esqueces das luzes que o Senhor te tem dado para conhecer a vileza dos gostos e dos bens terrenos; e te esqueces disto depois de o teres tantas vezes experimentado, achando sempre os mesmos bens e gostos terrenos e mentirosos! Fazes qualquer obra boa, mas quem sabe se misturas nela algum fim mundano de seres estimado mais que os outros? E o pior é querer um partido do meio, de dar-te, nem todo a Deus, nem todo ao mundo, buscando um caminho que nem seja o largo da perdição, nem o estreito da salvação6.

São Tomás afirma que a culpa é tirada pela contrição, unida ao propósito de se confessar7, como diz o salmista: “Eu irei confessar ao Senhor a minha iniquidade, e perdoastes a pena do meu pecado”. (Sl 31, 5). E convertendo-se, o pecador perde o gosto pelas coisas que o prendia ao mundo, pois não encontra prazer no que antes o deleitava; estas são as épocas na vida espiritual que a alma procura o sobrenatural. “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”. 8 “Não ando à procura de grandeza nem tenho pretensões ambiciosas” (Sl 130, 1) Os prazeres terrenos perdem seu sabor, “bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5, 3). A alegria passa a estar em alcançar o perdão e, assim, a vida eterna.

“Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançaram misericórdia” (Mt 5, 7). O homem perdoado, limpo, reintroduzido no amor de Deus sabe que o Rei celeste almeja a salvação de cada um. Portanto, agradá-Lo-á sendo misericordioso para com os outros como foi o proceder de Deus para consigo.“Ensinarei vosso caminho aos pecadores e para Vós se voltarão os transviados” (Cf. Sl 50, 15).

O Senhor nos tem dado tanto, como poderíamos abusar de tudo isso e ofendê-Lo? Devemos amá-Lo com todas as forças.

Cabe-nos meditar sobre a misericórdia do Divino Rei que ama um coração arrependido e pedir que Ele nos cumule de um espírito novo e puro para que possamos ser uma morada de seu repouso e alcançar a bem-aventurança eterna.

1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Adão homem dos homens, no qual existia a raiz de todos os homens. Conferência, 10. nov. 1979. (Arquivo do IFTE).
2 Id. Tende piedade de mim ó Deus. In: Dr. Plinio. Sao Paulo: Ano VI, n.63, jun. 2003, p.7.
3 CASCIARO, Jose Maria et al. Sagrada Biblia – Antiguo testamento —Livros poéticos y sapienciales. Pamplona: Faculdade de Teologia universidade de Navarra, 2008, p. 326. (Tradução da autora)
4 Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA. Op. cit. p.8.
5 PINAMONTI, S. J; ROSIGNOLI, S. J. Exercícios de Santo Inácio e leituras espirituais. 4. ed. Porto: Apostolado de Imprensa, 1953, p. 56.
6 PINAMONTI; ROSIGNOLI. Op. Cit. p.176.
7 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. A luz da fé. Lisboa: Verbo, 2002, p.113.
8 SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984, p. 15.

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