Uma vida mais suave

Ir. Juliane Vasconcelos Almeida Campos, EP

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“Quem não viveu no século XVIII, antes da Revolução, não conheceu a doçura de viver e não pode imaginar quanto é possível ter felicidade na vida”! 1 Famosa se tornou esta frase de Talleyrand, referindo-se à Revolução Francesa, que deitou por terra, entre muitas outras coisas, o respeito e a afabilidade predominantes no relacionamento humano até então. De maneira análoga, também se poderia dizer que não conheceu a serenidade quem não viveu antes que a sociedade fosse marcada a fundo pelos desenvolvimentos tecnológicos decorrentes da Revolução Industrial, que mudou a fisionomia do mundo.

De fato, em épocas anteriores tinha-se tempo para conversar e pensar, para longos períodos de distensão e despreocupação. Quando, porém, a produção econômica, a máquina e a técnica se sobrepuseram aos valores do espírito, o mundo se tornou ansioso por ter, fazer, comprar, consumir, correr… As lentidões que permitiam experimentar os deleites de uma existência calma e equilibrada deram lugar a uma incessante sofreguidão.

Num mundo agora transformado em imensa “aldeia global”, a enxurrada de informações imediatas e transmitidas de forma fragmentária, como em relâmpago, excitam e provocam agitação. O ritmo dos acontecimentos torna-se frenético. Já não se tem tempo para nada e o lema é ser fast: na comida, no relacionamento, na locomoção.

O retorno a uma vida mais “slow

No entanto, quando a vitória da velocidade e do frenesi parecia ter atingido todos os aspectos do nosso cotidiano, levantam-se aqui e ali brados de revanche do bom senso, visando restabelecer a cidadania do mundo slow

Assim, no ocaso do acelerado século XX, em 1999, surge em Orvieto uma associação internacional denominada Cittaslow, que pretende recuperar a identidade própria e as especificidades de cada território, a fim de promover para seus habitantes uma melhor qualidade de vida, com uma particular atenção à cultura da alimentação e do bom viver. Apesar de reconhecer que a globalização pode ser útil para a difusão do comércio e da cultura, Cittaslow afirma que tal fenômeno tende a achatar as diferenças e a esquecer as características peculiares de cada realidade singular, propondo modelos medianos que não pertencem a ninguém e geram, inevitavelmente, a mediocridade.

Na Itália, Alemanha, Polônia, Noruega, Inglaterra e Brasil já existe uma rede própria do movimento, mas cidades de outros países, como França, Espanha, Austrália e Japão, também aderiram à iniciativa. Para ser uma Cittaslow, a cidade deve possuir até 50 mil habitantes e precisa atender a, pelo menos, 50% dos critérios de uma lista com 60 itens.

Cittaslow nasceu inspirada em outro movimento, a Slow Food, associação surgida em oposição ao conceito de Fast Food e ao estilo de vida rápido, e pretende defender a legítima gastronomia e o prazer de um agradável e sossegado convívio à mesa. Ela estende sua atividade desde o campo agrícola à cozinha, propondo um modelo de desenvolvimento sustentável, onde prevalece o respeito pela biosfera e pela sociosfera, com base no uso responsável dos recursos naturais e dos valores culturais.

Tal modo de vida slow — fala-se também em Slow Schools, Slow Tourism, Slow Aging… — se caracteriza pelo desejo de um retorno aos ritmos mais lentos e humanos, que permitam combater o stress, a pressão para alcançar objetivos concretos e artificiais, e a pressa generalizada que marca o nosso dia a dia.

Este regresso à mentalidade de uma vida mais lenta e orgânica nos recorda um velho adágio francês: “Chassez le naturel, il revient au galop — Retirai o que é natural, ele retorna a galope”!

Composto de matéria e espírito, necessita o homem de um ritmo de vida mais tranquilo para desfrutar de certos prazeres da alma que as velocidades desordenadas não permitem sequer vislumbrar. A boa conversa ou a contemplação, por exemplo, só são viáveis em um contexto desprovido de agitação. O silêncio, tantas vezes tão eloquente, é irmão da serenidade e do recolhimento, e nele Deus costuma Se encontrar com os homens.

O exemplo de Jesus

Em vários episódios narrados pelos Evangelhos, Jesus Se retirava para rezar, fugindo das turbas e do bulício: “E despedido que foi o povo, retirou-Se ao monte para orar” (Mc 6, 46); “Jesus retirou-Se a uma montanha para rezar, e passou aí toda a noite orando a Deus” (Lc 6, 12).

Diz São João Crisóstomo que o Divino Mestre assim fazia “para nos ensinar a descansar, a todo o momento, do alvoroço e do barulho, pois a solidão é conveniente para a meditação. […] quem se aproxima de Deus necessita afastar-se do ruído e buscar tempo e lugar distante do tumulto”. 2

“Jesus, no Evangelho” — afirma Cantalamessa — “nunca dá a impressão de estar asfixiado pela pressa. Às vezes, até perde tempo: todos O procuram e Ele não Se deixa encontrar, tão absorto está na oração. […] Se a lentidão tem conotações evangélicas, é importante dar valor às ocasiões de descanso ou de demora que estão distribuídas ao longo da sucessão dos dias. O domingo, as festas, se bem utilizados, permitem cortar o ritmo de vida demasiado excitado e estabelecer uma relação mais harmônica com as coisas, as pessoas e, sobretudo, consigo mesmo e com Deus”. 3

Quantos benefícios pode nos trazer a lentidão, e em quantas circunstâncias! Quão salutar pode ser ela para o bom relacionamento entre os homens, e o destes para com Deus! Oxalá possa o mundo contemporâneo reconquistar uma vida mais slow, na certeza de que não adianta se desgastar e correr tanto para obter bens materiais sem conta, relegando ao esquecimento princípios e virtudes. Tudo isso passa e o que realmente tem valor são as riquezas do espírito que perduram na vida eterna, onde, aliás, não há relógio!…

1 TALLEYRAND-PÉRIGORD, Charles-Maurice. La confession de Talleyrand. Paris: L. Sauvaitre, 1891, p.57.
2 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XLII, n.1. In: Homilías sobre el Evangelio de San Juan (30-60). Madrid: Ciudad Nueva, 2001, v.II, p.137.
3 CANTALAMESSA, OFM Cap, Raniero. Echad las redes. Reflexiones sobre los Evangelios. Ciclo B. Valencia: Edicep, 2003, p.259.

Revista Arautos do Evangelho dez 2014

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