UMA MANEIRA DE EDUCAR O HOMEM

Ir. Mariana de Oliveira, EP

“Nenhum povo recebeu tanto carinho, a nenhum outro revelou os seus preceitos” (Sl 147, 9). Com essas palavras se refere o salmista à nação de Israel com a qual Deus estabeleceu um forte vínculo. O Todo-Poderoso Se manifestava incessantemente aos israelitas; estes O adoravam por ser Ele seu Deus, e era tal a reverência prestada a seu supremo poder, que o povo não tinha outro soberano senão o próprio Criador do Universo. No entanto, nem todos se recordam quando começou, como e para onde confluía esse especialíssimo convívio.

Depois do pecado, a Promessa e o povo eleito

O relacionamento de Deus com o homem existe desde quando os nossos primeiros pais, Adão e Eva, foram criados. Ao soprar naquele boneco de barro (cf. Gn 2, 7), Deus não só lhe infundiu a vida, como depositou nele uma semente muito mais preciosa que a vida: o desejo de gozar do convívio divino. “Esta aspiração, infundida em seu próprio ser a fim de facilitar as relações entre ele e o Criador, nem os piores crimes ou fugazes e enganosos prazeres desta vida conseguem apagar. Numa palavra, a paz e a felicidade autênticas só podem ser encontradas em Deus”. 1

E mesmo depois da horrível queda original, este vínculo de relacionamento não foi extinto, mas subsistiu num único “fio”− se assim podemos dizer −, que se chamou Aliança. Aliança ou Promessa que não rompeu o expresso desejo do Altíssimo de que aquele casal desse origem a uma vasta descendência, e esta, por sua vez, se multiplicasse (cf. Gn 1, 28) e se preparasse para receber dignamente o Grande Libertador que haveria de nascer de sua linhagem (cf. Gn 3, 15).

Os Patriarcas

Promessa não sepultada com o pecado de Adão, foi ela revigorada pelo próprio Deus, ao longo das gerações, a homens que bem podem ser chamados “picos da cordilheira” da história israelita. A linhagem desta plêiade de varões iniciou-se com os Patriarcas, aos quais seguiram os Juízes. Assim foi, por exemplo, com Noé, depois do Dilúvio, quando lhe disse: “Vou fazer uma Aliança convosco e com vossa posteridade” (Gn 9, 9).

A Abraão, o autêntico genitor do povo judeu, o Senhor também reafirma a Aliança primeira: “Tornar-te-ei extremamente fecundo, farei nascer de ti nações e terás reis por descendentes. Faço aliança contigo e com tua posteridade, uma aliança eterna, de geração em geração, para que eu seja o teu Deus e o Deus de tua posteridade” (Gn 17, 6-7).

Igualmente a Isaac, fruto da Promessa feita a Abraão, o Todo-Poderoso assegura: “Eu estou contigo e te abençoarei, porque é a ti e à tua posteridade que darei toda esta terra, e cumprirei o juramento que fiz ao teu pai Abraão. Multiplicarei tua posteridade como as estrelas do céu, dar-lhe-ei todas estas regiões, e nela serão benditas todas as nações da terra” (Gn 26, 3-4). Em Jacó, ou Israel, o juramento atingiu seu pináculo: “os israelitas foram fecundos e multiplicaram-se; tornaram-se tão numerosos e tão fortes, que a terra ficou cheia deles” (Ex 1, 7).

Na descendência de Israel nasce Moisés, um “pico” vistoso e agradável aos olhos do Senhor, chamado a livrar os hebreus do pesado jugo egípcio. Assim poderíamos percorrer do começo ao fim a história da nação israelita e encontrar, em todas as épocas, promissoras e consoladoras palavras do Altíssimo.

“Convinha, pois, que aquele povo do qual Cristo haveria de nascer pudesse dispor de alguma especial santificação”. 2 Fica patente: Deus não abandonava aqueles homens, ao contrário, mostrava agrado por tê-los escolhido como ancestrais do Salvador e por esta razão Se manifestava com tanta frequência: “Não é porque sois mais numerosos que todos os outros povos que o Senhor Se uniu a vós e vos escolheu; ao contrário, sois o menor de todos. Mas o Senhor ama-vos e quer guardar o juramento que fez a vossos pais” (Dt 7, 7-8).

O normal seria que o povo de Israel, objeto de tantos cuidados, fosse ao menos grato a seu Supremo Benfeitor e andasse na justiça ante seu divino olhar. Porém, não foi isso que sucedeu…

Ingratidão perante a generosidade divina, no Antigo Testamento

Depois do pecado, o homem se tornou fraco para o bem e inclinado ao mal e, à maneira de um carro desgovernado que tromba em postes e rola na via, os filhos de Eva chocam-se com suas más tendências. Caso não as refreiem, despencam nos abismos do pecado.

Pois bem, este “Deus que Se preocupa com o [homem] e quer sua felicidade”, 3 que abre o mar para dar passagem aos hebreus (cf. Ex 14, 16.21-22), que alimenta seu povo em pleno deserto com pão e carne à vontade (cf. Ex 16, 13), que lhe sacia a sede, fazendo irromper água das rochas (cf. Ex 17, 6), que o guia no deserto e ameniza o calor do dia com uma coluna de nuvem e o frio da noite com uma coluna de fogo (cf. Ex 13, 21-22), recebe em retribuição queixas, desobediências, traições. O povo de Israel, testemunha de numerosos desvelos sobrenaturais, lamenta a falta de água, reclama do maná, chamando-o de “miserável alimento” (Nm 21, 5), e, por fim, trai o único e verdadeiro Deus, idolatrando um bezerro de metal fundido, exclamando: “Eis ó Israel, o teu deus que te tirou do Egito” (Ex 32, 4).

Afirma um velho adágio latino: “Corruptio optima, pessima – a corrupção do ótimo é o péssimo”. A eleição divina que pairava sobre aquele povo, da qual os israelitas eram cientes e outrora fora contemplada com amor e reconhecimento, passou a ser vista por alguns com indiferença; por outros, como objeto de humilhação. E, inclusive, de revolta, pois por detrás dessas lamúrias no deserto se ocultava um avassalador desejo de voltar à escravidão do Egito, sob as ordens de um rei tirano, e abandonar o caminho rumo à Terra Prometida guiados pela mão de Deus. Quem não distingue a falta de amor que tomava conta daqueles hebreus de cerviz dura? Podia o Todo-Poderoso ficar de “braços cruzados”, enquanto sua porção escolhida especialmente para receber a salvação do mundo prevaricava e transmitia, através das gerações, a corrupção?

Os filhos de Israel precisavam de correção para seu procedimento, pois era muito grave continuar retribuindo com ingratidões tantos afetos. Por isso, o Criador dá outro colorido ao convívio com suas criaturas, Ele castiga os desobedientes a fim de que o povo inteiro não O despreze. 4 O fortíssimo Senhor dos exércitos afirma que é um “Deus zeloso” (Dt 5, 9), revela que quer a obediência enlevada a seus decretos, além de Se mostrar extremamente irado com a iniquidade: “Se não Me escutardes e não guardardes os meus mandamentos, […] minha alma vos abominará” (Lv 26, 14.30);

Entra em vigor o regime ou reino da justiça, pois, “sem ela, seria a anarquia, a luta entre os interesses rivais, a opressão dos fracos pelos fortes, o triunfo do mal”. 5 Sem ela, a desobediente raça dos hebreus não seria jamais perpetuada, porque a tibieza na qual estava submersa era suficiente para que Deus a fizesse desaparecer, com o fim de não escandalizar os gentios. À justiça − cujo objetivo principal é dar a cada um o que lhe é devido, 6 ou seja, dar o prêmio ao bom e o castigo ao mau −, “compete […] retificar os atos humanos”. 7

Ressaltamos aqui mais algumas passagens das Escrituras, para compreendermos melhor como ficaram, no quadro da história do povo bem-amado, as novas cores da justiça que o Senhor pintou segundo sua perfeição.

Quando, por exemplo, declarou: “Não cometerás adultério” (Dt 5, 18), fez perecer o filho da união ilegítima de Davi (cf. II Sm 12, 14). E se havia decretado que somente aos levitas competia exercer as funções sacerdotais e tocar nas coisas santas, e que nenhum outro poderia fazê-lo (cf. Nm 18, 7), não foi certíssimo ferir de morte a Oza, quando este teve a temeridade de aproximar-se da Arca da Aliança e segurá-la, sem ser levita? (cf. II Sm 6, 7)

Da mesma maneira, quando ordenou “Não pronunciarás em vão o nome do Senhor, teu Deus” (Dt 5, 11), não foi lícito castigar quarenta e dois rapazes que zombaram de Eliseu, o portador da palavra de Deus, enviando dois ursos para tragá-los (cf. II Re 2, 23-25)? Igualmente exigiu: “Não terás outros deuses diante de minha face” (Ex 20, 3). E se não andardes nos meus caminhos, seguindo meus preceitos, Eu vos enviarei terríveis flagelos, vos entregarei à espada, vos farei sucumbir ante vossos inimigos, povos estranhos vos dominarão e não lhes podereis resistir (cf. Lv 26, 14-38). Não era, pois, sumamente justo e digno de um Deus cuja palavra é eterna entregar ao domínio dos reis da Assíria (cf. II Re 17, 22-23), da Babilônia (cf. II Re 25, 1-11), dos Persas e Medos (cf. II Cr 36, 20), e da Grécia aqueles judeus que se afastaram de sua Aliança, venderam-se ao pecado e dobraram seus joelhos aos baals (I Mac 1, 1-43)?

Comprovamos, assim, como Deus não poupava a justiça para corrigir os israelitas, atuando em suas vidas tanto como Senhor e Rei, quanto como Educador. O Altíssimo não lhes manifestava a Boa-nova da salvação sem exigir-lhes a obediência exímia aos decretos que havia dado. Tinha Ele a finalidade de compenetrá-los e prepará-los para o cumprimento da Promessa, isto é, para o nascimento do Messias.

1 MORAZZANI ARRÁIZ, Mariana. Entre Deus e os homens. In: Arautos do Evangelho. São Paulo: Ano XIII, n. 147, mar. 2014, p. 24.
2 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q. 98, a. 4.
3 MARTÍNEZ SIERRA, Alejandro. Antropología Teológica fundamental. Madrid: BAC, 2002, p.13. (Tradução da autora).
4 Cf. SANTO IRINEU. Tratado contra as heresias. In: COMISSÃO EPISCOPAL DE TEXTOS LITÚRGICOS. Liturgia das Horas. Petrópolis: Vozes, Paulinas, Paulus, Ave Maria, 2000, v. II, p. 172.
5 TANQUEREY, Adolphe. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. § 1038 .Trad. João Ferreira Fontes. 6. ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1961, p. 492.
6 Cf. COLLIN, Enrique. Manual de Filosofía Tomista. Trad. Cipriano Montserrat. 2. ed. Barcelona: Luis Gili, 1951, v. II, p. 264.
7 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op.cit. II-II, q. 58, a. 2.

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