A bem-aventurança de ser rico: uma realidade ou uma utopia?

Ir. Maria Cecília Veas, EP

Conta-se que Turenne, quando tinha apenas seus sete anos, desapareceu de casa. Ao pôr-se a procurá-lo, seu pai encontrou-o reclinado aos pés de um canhão. Querendo assustá-lo, talvez para reparar o susto que dera na família, o pai gritou-lhe:

– Cuidado, inimigo!

E para surpresa do pai, o pequeno, pondo-se de pé, com uma prontidão única, exclamou:

– Onde está, para que eu possa combatê-lo?

De fato, era um homem de valor, ainda que em potência, digno, já revelando o que foi no futuro: o grande general das tropas de Luís XIV.

Realmente, a esta posição de luta, nenhum homem escapa, conforme tão bem expressou Jó, no momento em que bebia a taça amarga do sofrimento: “acaso não é uma luta a vida do homem sobre a terra?” (Jó 7, 1) Portanto, se há luta, há inimigos, e existem em abundância. Mas, não precisamos ir longe para procurá-los. Basta olharmos em nosso interior para logo percebemos as misérias herdadas do pecado original, um verdadeiro campo no qual temos de travar a primeira batalha. E os males olham-nos como a dizer: “Ao combate! Ou tu lutas, ou te tragamos!” E a alma começa o doloroso percurso da vida.

Ora, para as almas verdadeiramente justas, a vida é um combate não apenas para não serem tragadas pelo torvelinho do infortúnio, mas é para tornarem-se agradáveis a Deus na luta contra o mal. Que mal?

Ensina-nos a teologia que os principais inimigos do homem são: o demônio, o mundo e a came. Para fortes inimigos, tal seria que Deus não dispusesse de fortes auxílios.

A vida de perfeição fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo nada mais é que um precioso contributo para se alcançar a salvação. Os votos de castidade, pobreza e obediência são os auxílios por onde o homem subtrai-se da herança do pecado, que são as concupiscências, para se tomar digno herdeiro do Reino dos Céus.

Como é-nos impossível discorrer sobre cada um dos votos que um religioso professa em tão poucas linhas, trataremos apenas da pobreza, enquanto lenitivo das paixões que nos prendem aos bens da Terra, não prescindindo do auxílio da graça.

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riqueza_Certa feita, enquanto Santa Gema apreciava algumas joias postas sobre a escrivaninha, apareceu-lhe por primeira vez seu Anjo da Guarda, luminoso e radiante que lhe dirigiu a palavra: “uma filha de Deus é tão rica que não precisa de joias passageiras”.

Por estas palavras, entendeu que se tratava de meros objetos insignificantes, carregadas de um vazio, conforme diz o Eclesiastes: “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. (Ecl 1, 2) E a partir deste dia, nunca mais se enfeitou.

Que bela lição para nós! Desprender-se daquilo que nos envaidece. Pois bem, esta também é uma forma de praticarmos a virtude da pobreza.

Conforme reza a teologia, a pobreza obriga ao religioso a três coisas fundamentais1:

1º Não possuir nada como próprio.

Sob o ponto de vista tratado, cabe-nos aqui um exame de consciência. Quantas vezes apropriamo-nos dos dons que Deus nos deu para glorificação d’Ele? Com razão exclama o Apóstolo: “o que tens que não tenhas recebido?” Tudo o que Deus pôs a serviço do homem, a criação que o rodeia, é um presente para que dela se use.

Ora, a diferença que vai entre as qualidades naturais de alguém, físicas ou psicológicas, e as criaturas, está apenas no sujeito em que residem. Estas estão no universo, aquelas; no homem. Portanto, a mesma razão existente para nos desprendermos dos bens temporais, vale para nos desapegarmos de nós mesmos, valendo o princípio de que “nosso corpo está ferido de morte”, e sendo passageiro não há porque dele nos apegarmos. “Porque nada trouxemos ao mundo, como tampouco nada poderemos levar. Tendo alimento e vestuário, contentemo-nos com isto”. (1 Tm 6, 7-8)

2° Não dispor de nada sem autorização

Aqui cabe outra aplicação. Se um religioso incorre no pecado contra o roubo, quando se apropria de um objeto sem autorização, do mesmo modo todo homem incorre no roubo a Deus, alegando seu o que a Ele pertence.

Por isso, não devemos dispor de nossas qualidades para aparecermos bem à glória mundana! Façamos tudo somente para Deus, porque no momento oportuno Ele nos exaltará (1 Pd5, 6), se a obra feita, de fato, mereça o louvor.

3° Viver pobremente a exemplo de Cristo

Nosso Senhor Jesus Cristo convida-nos constantemente a não mergulharmos no apreço pelas coisas terrenas, e disto deu-nos o exemplo com sua vida: escolheu para nascer não um rico palácio, senão uma gruta; não quis uma cidade importante, preferindo os pequenos subúrbios de Belém; não quis ser conhecido senão após trinta anos de vida oculta. Quando os fariseus O desprezavam no Sinédrio ou O difamavam, Ele não se incomodou por tentarem tirar-Lhe a glória diante do povo; ao ser elogiado remetia ao Pai. No momento da morte ,não temeu o castigo ignominioso, derramou até a última gota de seu Preciosíssimo Sangue, e não se apegou ao seu maior tesouro, Maria Santíssima, legando-A ao discípulo amado.

Levando tudo às últimas consequências, o Redentor cumpriu sua missão: estava restabelecido para o homem o Reino da Graça, do perdão.

E nós o que damos por Nosso Senhor? Somos capazes de desprendermos inteiramente das coisas fúteis para abraçarmos a via da graça, do sobrenatural?

Cuidemos, portanto de não nos apegarmos a esta terra, pois “o mundo é toda atração que o conjunto das criaturas exerce para desviar desse ponto que é a graça santificante”2.Ouçamos, isto sim, a voz do Divino Mestre que sussurra em nosso interior: “Filho, a minha graça é um dom precioso; ela não sofre mistura de coisas estranhas, nem consolações mundanas. […] Não podes ao mesmo tempo, tratar comigo e deleitar-te em coisas transitórias.3

Não desanimemos, pois, se é verdade que os inimigos estão tão próximos de nós, é bem verdade que os tesouros e as verdadeiras riquezas residem também no interior de nossa alma, desde que nunca a maculemos: “temos este tesouro em vasos de barro”. (2 Cor 4, 7)

Daí entendermos este aspecto sublime da pobreza, que caracteriza a verdadeira riqueza: abandonarmos o nada, para possuirmos aquilo que é tudo: a graça, o Reino dos Céus, o próprio Deus.

1 ROYO MARÍN, Antonio. Teología de la perfección cristiana. Madrid: BAC, 1998, p. 862-863.
2 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Apud. João Scognamiglio Clá Dias. Reuniões de formação sobre a Graça —1996, São Paulo, p. 66.
3 TOMÁS DE KEMPIS. Imitação de Cristo. Livro III, cap. 53

2 responses to “A bem-aventurança de ser rico: uma realidade ou uma utopia?”

  1. Ceres de Andrade Paes disse:

    Salve Maria,Estimada Ir.Maria Cecília Veas,EP!
    Gostei muito!!! desse lindo texto.
    Muito obrigada por compartilhar aqui conosco tanta Sabedoria com encantamento
    Ouvir,ler,estudar sobre Deus agrada-me profundamente,para tentar ser SEMPREcomo ELE quer que sejamos:Somente Amor!na Humildade total,despojada(os) de tudo aquilo me(nos) prende ao terreno e possa me(nos) afastar D”ELE!.
    Agradeço-lhe carinhosamente e espero um dia….poder conhecê-la Querida Irmã, também pessoalmente.
    Já conheço sua irmã,Ir.Isabel Veas,seus pais e seus outros irmãos.
    Rezarei Sempre para as Senhoras Arautos do Evangelho.
    Um abraço carinhoso,
    Ceres Paes.

  2. Jose Eilson disse:

    gostei dessa materia, estou sempre apreciando as boas noticias.

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