A dor

Anna Luiza Cendon Finotti

Quando Deus criou o homem, ademais de todas as maravilhas que lhe concedeu no Paraíso, cumulou-o de bens sobrenaturais.

As qualidades sobrenaturais concedidas ao primeiro homem foram: a graça santificante, as virtudes teologais e os dons do Espírito Santo. Deus punha sua complacência em habitar no homem como num magnífico santuário por Ele mesmo ornado. Sua vinda sensível ao Paraíso Terrestre, de que nos fala a Escritura, era um símbolo dos dulcíssimos e invisíveis liames de amizade que existiam entre o homem em estado de graça e o Criador.1

Ou seja, o ser humano foi criado num estado magnífico, com graças especialíssimas. Sua alma estava toda propensa ao bem, possuía a própria vida divina, as virtudes teologais: fé, esperança e caridade, e ainda os dons do Espírito Santo: ciência, inteligência, sabedoria, prudência, fortaleza, temor, piedade, conselho e fortaleza. Além disso, Deus concedeu-lhe também os dons preternaturais.

Enquanto os dons sobrenaturais faziam sentir sua benéfica influência sobretudo na parte racional do homem, os dons preternaturais cumulavam de perfeição a parte sensível. Eram estes em número de três:integridade, imortalidade, impassibilidade.2

O dom de integridade ordenava inteiramente a natureza humana. “Esse dom especialíssimo fazia com que todas as inclinações e os impulsos da natureza estivessem em harmonia com a lei divina”3. Pelo dom imortalidade os homens não passariam pela morte, “depois de uma permanência mais ou menos prolongada no Paraíso Terrestre, seriam transladados definitivamente ao céu sem passar pelo transe terrível da dor, da enfermidade”.4

E finalmente pelo dom de impassibilidade o homem estava isento de qualquer mal-estar, pois este “lhe proporcionava a isenção de dores e sofrimentos. Sem perturbação orgânica, psicológica, o homem gozava de uma felicidade perfeita. Nada perturbava sua paz e tranquilidade.5

Pelo pecado nossos primeiros pais foram expulsos do Paraíso e privados desses privilégios e assim o sofrimento, a morte, as doenças tornaram-se companheiros da humanidade tisnada pelo pecado original.6

Desde os seus primeiros instantes, vê o homem erguer-se diante de si o espectro da dor. Não há escritor, por mais profundo ou por mais banal, que não tenha descrito, entre atônito e temeroso, o terrível combate entre o homem e a dor. A existência humana nada mais é do que uma luta entre o homem e a dor. Luta trágica, luta terrível, em que a dor sempre vence o homem.7

A dor física e dor moral

São João Paulo II, em sua Carta Apostólica Salvifici Doloris, afirma ser o sofrimento “algo essencial à natureza humana. […] parece pertencer à transcendência do homem; é um daqueles pontos em que o homem está, em certo sentido, ‘destinado’ a superar-se a si mesmo; e é chamado de modo misterioso a fazê-lo”.8 A natureza humana por ser um composto de corpo e alma não sofre apenas dores físicas, mas sobretudo dores morais.

O homem sofre de diversas maneiras, que nem sempre são consideradas pela medicina, nem sequer pelos seus ramos mais avançados. O sofrimento é algo mais amplo e mais complexo do que a doença e, ao mesmo tempo, algo mais profundamente enraizado na própria humanidade. É-nos dada uma certa ideia quanto a este problema pela distinção entre sofrimento físico e sofrimento moral. Esta distinção toma como fundamento a dupla dimensão do ser humano e indica o elemento corporal e espiritual como o imediato e ou direto sujeito do sofrimento. Ainda que se possam usar até certo ponto como sinônimas as palavras “sofrimento” e “dor”, o sofrimento físico dá-se quando, seja de que modo for, “dói” o corpo; enquanto que o sofrimento moral é “dor da alma”.9

Das mais variadas formas o homem pode sofrer fisicamente —doenças, fome, acidentes, frio, e quantas outras coisas, independente da idade, raça ou condição social — e, na maioria das vezes, esses são acompanhados de sofrimentos morais. Para melhor compreendermos a ligação que há entre um sofrimento e outro, transcrevemos aqui um exemplo dado por Mons. João Scognamiglio Clá Dias: um lutador de karatê, quando está em uma competição recebe toda espécie de pancadas e isso lhe causa dor. Entretanto, se ele tem o apoio da torcida, ainda que seu corpo sofra em decorrência dos golpes que leva, por assim dizer em sua alma ele não sofre porque sente a adesão e o estímulo da torcida. Por outro lado, pode uma pessoa sofrer na alma sem ter recebido nenhuma pancada, por exemplo, um inocente que se vê objeto de todo tipo de calúnia e humilhações.10

Podemos relembrar também outro caso, ocorrido com o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira e que muito o impressionou. Certa feita, encontrava-se num restaurante e enquanto esperava o que havia pedido, passou a analisar os circunstantes. No meio de tantas pessoas dissipadas e agitadas com os seus problemas, admirou-se ao ver um homem sério e reflexivo, sentado num canto do recinto, tomando seu lanche a sós. Qual seria o motivo deste estado de espírito tão pouco frequente em nossos dias? Sua indagação foi respondida quando chegou o dono do estabelecimento e pôs-se a conversar com dito personagem:

— Oh!que bom vê-lo por aqui! Mas, onde estão seus amigos?

— Pois é… Eles sempre estavam comigo, mas depois que perdi minha perna, todos me abandonaram…

Assim, Dr. Plinio compreendeu que aquele estado de espírito provinha do abandono em que o homem se encontrava. Era uma “dor de alma” profunda consequente de um acidente físico. Nesta situação o que mais lhe fazia sofrer: o fato de estar sem perna ou sem amigos? Se ele estivesse fisicamente dolorido, mas houvesse quem lhe confortasse a alma, não seria para ele uma alegria? Por outro lado, se possuísse o físico perfeito, mas fosse considerado um pária na sociedade, não seria melhor a primeira situação? Isso ocorre pois o instinto de sociabilidade no ser humano é profundamente mais forte do que o instinto de conservação. Inúmeros são os que preferem arriscar a própria vida a serem considerados como covardes pelos demais.11

O sofrimento bem aceito é “o que mais eleva a alma de uma pessoa. Nesta terra não há individuo mais indigente do que aquele a quem Deus não manda dores”.12 A partir dessa compreensão da dor podemos admirar melhor o que afirma Dom Chaudard em seu livro A alma de todo apostolado: o sofrimento é o oitavo sacramento,13 tal é o seu valor aos olhos de Deus.

Sofrer, todos sofrem, o grande problema está no modo como se enfrenta a dor pois, “as mesmas misérias levam alguns para o céu e outros para o inferno”.14 No alto do Calvário, encontramos a mais bela lição nessa matéria: Três homens estão crucificados. O do centro, Nosso Senhor Jesus Cristo, nos dá o mais belo exemplo: sofre como inocente pelos pecados alheios. Ao lado direito de Jesus, o Bom Ladrão sofre como penitente, mas do lado esquerdo do Divino Redentor, o mau ladrão sofre como um condenado.15

1 CAMPANA, op. cit. p. 24.
2 Ibid. p. 26. (Grifo da autora)
3 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. No sofrimento, a raiz da glória. In: O inédito sobre os Evangelhos, op. cit. v. V, p. 323.
4 ROYO MARÍN, Antonio. Nada te turbe. Madrid: Palabra, 1982, p. 15. (Tradução da autora)
5 FORMENT, Eudaldo. Id a Tomás: Principios fundamentales del pensamiento de Santo Tomás. Pamplona: Fundacion Gratis Datæ, 2005, p. 69. (Tradução da autora)
6 Cf. CCE 1264.
7 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Na Academia Jackson de Figueiredo. In: Dr. Plinio. São Paulo: Ano IX, n. 94, Jan. 2006, p. 5.
8 JOÃO PAULO II. Salvifici doloris, n.2.
9 Ibid. n.5.
10 CLÁ DIA, João Scognamiglio. Palestra. São Paulo, 30 dez.2001. (Arquivo do IFTE)
11 Cf. Id. O Sermão da Montanha. In: O inédito sobre os Evangelhos, op. cit. v. VI, p. 85.
12 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. PLINIO CORREA DE OLIVERIRA: Notas Autobriográficas. São Paulo: Retornarei,2008, v. I, p. 294.
13 Cf. CHAUTARD, OSCO, Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. São Paulo: FTD, 1962, p. 112
14 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. A prática do amor a Jesus Cristo. Aparecida: Santuário, 2004, p. 56.
15 Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Carta circular a los amigos de la Cruz.n.33.In: Obras. Madrid: BAC, 1953, p.245.

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