A palavra de Deus em música – conclusão

Irmã Kyla Mary Anne MacDonald, EP

Os beneditinos e os ouvidos do coração

Já nos primórdios da Igreja, então, o cântico sempre fez parte do culto, nas mais diversas ocasiões, onde quer que os fiéis se reunissem (cf. I Cor 14, 26). No entanto, como a era dos mártires deu lugar à era dos monges, a arte do canto litúrgico encontrou o local ideal para seu cultivo: os mosteiros. São João Cassiano, o eremita do Egito que introduziu o ideal do monaquismo na Gália, com o estabelecimento da Abadia de São Vitor, em Marselha, ensinava: “Nós, com frequência cantamos os salmos, de maneira que podemos continuamente crescer em compunção”. 19

O monaquismo que proliferou inicialmente na Europa Ocidental imitou de perto o monaquismo do deserto, do Oriente. Contudo, encontrou sua própria nota distintiva com a fundação dos beneditinos, em Subiaco, no século VI, e, por esta razão, São Bento é aclamado Pai do monaquismo ocidental.

Exerceu ele — de quem se pode dizer ter aplicado o dom romano do direito e da ordem às instituições monásticas — a mesma influência aperfeiçoadora sobre o canto sacro. O próprio São Gregório tinha sido monge antes de ocupar o sólio pontifício, e foi sua afinidade pessoal com os beneditinos que lhe deu um conhecimento completo dos modos do canto litúrgico, os quais serviram como matéria-prima do canto gregoriano. Os sábios beneditinos, por sua vez, historicamente tomariam a liderança na sua interpretação, preservação e restauração.

Para os beneditinos, assim como o trabalho era realizado em comum, era natural que sua tarefa primeira, o “trabalho de Deus” — como São Bento chama o Ofício Divino —, também devesse ser partilhado em comunidade, e era a clave de sua espiritualidade e de sua vida diária. Em sua regra, São Bento admoesta: “estejamos sempre atentos ao que diz o profeta: ‘Servi ao Senhor com temor’; e também: ‘Cantai sabiamente’ e ‘Na presença dos anjos, cantarei a Vós’. Portanto, consideremos como devemos nos comportar na presença de Deus e de seus anjos e, desta forma, participemos do ofício de maneira que a mente esteja de acordo com a voz”. 20

É curioso o fato de o canto sacro ter florescido e adquirido sua forma mais perfeita em um ambiente onde, para favorecer a contemplação, os monges “deveriam ser zelosos em manter sempre o silêncio”. 21 O canto, que preenchia a maioria das horas de vigília, evidentemente não quebrava o silêncio interior dos monges, mas era consonante com ele e, de fato, fruto dele.

Ausculta, o fili […] et inclina aurem cordis tui22 — “Ouve, filho, e inclina os ouvidos de teu coração” é a exortação de abertura da regra beneditina. Silêncio que abre os ouvidos do coração para a voz não pronunciada da graça e torna a alma mais perceptiva para os significados mais profundos das palavras. Comenta o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira que os aspectos imponderáveis existentes no som musical ajudam a revelar este aspecto imponderável da palavra e “põem em foco uma porção de coisas que o sentido literal da palavra não diz”. 23

A palavra de Deus em música

Ao atingir o século XII, os beneditinos, em seu aperfeiçoamento do canto sacro, tiveram grandes discernimentos sobre a “oculta afinidade” entre palavra, música e alma, considerada por Santo Agostinho, como foi visto. Santa Hildegarda de Bingen via a palavra e a música como uma representação mística da união da natureza humana e divina, na Encarnação: “a palavra designa o corpo, mas a música manifesta o espírito. Porque a harmonia do paraíso proclama a divindade do Filho de Deus, e a palavra faz conhecer sua humanidade”. 24

São Bernardo mostra como os ouvidos corporais estão relacionados aos ouvidos do coração, ensinando dever o canto “agradar o ouvido a fim de mover o coração”. 25 O Doutor Melífluo — ele próprio autor de grande número de hinos em estilo gregoriano — afirma que os cânticos devem ser, acima de tudo, resplandecentes com a verdade, de maneira que a melodia “não deve obscurecer o significado do texto, mais propriamente, deve fazê-lo frutífero”. 26

No século XIII, São Tomás de Aquino combinaria suas habilidades musicais — as quais ele desenvolveu durante sua formação juvenil com os beneditinos de Monte Cassino — com sua extraordinária capacidade dominicana de ensinar, para compor, ambas, as melodias e as palavras de alguns dos mais valiosos hinos eucarísticos da Igreja. Para ele, “um hino é o louvor a Deus com cântico; um cântico é uma exultação da mente habitando nas coisas eternas, irrompendo na voz”. 27 Sua obra prima, Lauda Sion Salvatorem, melodicamente encerra toda a doutrina da Igreja relativa à Eucaristia.

O canto gregoriano, então, consistindo tão somente de palavras com uma única linha melódica, “traz o ‘ouvido do coração’ muito perto da palavra divina, com a finalidade de ouvi-la diretamente”. 28

Pio XII elogia esta qualidade do canto gregoriano: “Pela íntima aderência das melodias às palavras do texto sagrado, esse canto não só se enquadra a este plenamente, mas parece quase interpretar-lhe a força e a eficácia, instilando doçura na alma de quem o escuta; e isso por meios musicais simples e fáceis, entretanto, permeados de tão sublime e santa arte, que em todos suscitam sentimentos de sincera admiração”. 29

O componente musical do canto gregoriano possui ricos instrumentos de expressão a fim de colocar o texto em alto relevo, quase se tornando um com as palavras, como demonstra D. Dominic Johner: “A música gregoriana, todavia, não é meramente uma música de ornamento; ela não descreve o texto como uma guirlanda cinge uma coluna, sem conexão íntima com ela. O canto pode também tornar o texto interpretativo, expressivo e explanativo. Com frequência traz suas graduações até o ponto exato em que uma interpretação declamatória do texto cresce em calor e enfatiza aquela palavra que marca seu clímax. […] Tornar-se-á evidente que o canto une de modo perfeito o texto e a melodia, e que há uma íntima relação, uma união de espírito, entre eles”. 30

Um dos meios pelos quais o canto gregoriano revela o significado textual é através do uso da ordem das notas, ascensões, descidas e intervalos, cada um dos quais desempenha um determinado papel na interpretação do tema cantado. D. Johner ainda esclarece que os intervalos maiores e ascendentes denotam maior envolvimento da sensibilidade do que os intervalos menores e descendentes. Deste modo, uma frase melódica composta principalmente de segundas e terças — padrão predominante na maioria dos cantos — estabelece um ambiente de moderação e serenidade, com uma grande capacidade para a expressão de reverência e terna confiança. Em contraste, um intervalo de quarta cria um impacto mais forte; ascendendo, é portentoso, festivo. Para o intervalo de quinta é reservada a expressão das mais profundas experiências do espírito, seja tristeza, serena felicidade ou fé profunda e admiração. 31

Em momentos fugazes, a linha melódica do canto parece até mesmo interromper a dimensão verbal e levantar voo em puro jubilus, uma expressão musical de uma alegria além das palavras, que tipicamente ornamenta uma palavra como Alleluia. Esta forma de vocalização livre é, na pena de Santo Agostinho, “a voz do coração irrompendo em alegria, e procurando também expressar sentimentos cujo significado talvez nem compreenda. […] Quando somos jubilosos? Quando glorificamos algo que não pode ser expresso”. 32

Expressão do sobrenatural: tônico das almas

Para São Gregório Magno, o canto sacro pode de fato preparar o coração para a ação de Deus: “Através da voz da salmódia, quando é entoada com a força do coração, um caminho está preparado para o Senhor onipotente, de modo que Ele possa derramar na mente atenta os mistérios da profecia ou a graça da compunção. […] Quando Lhe cantamos, abrimos um sendeiro para que Ele possa vir à nossa alma e inflamar-nos, pela graça de seu amor”. 33 O primeiro monge Papa também compreendeu que certos sons musicais podem favorecer este encontro, em uma natureza humana tão inclinada a ater-se aos aspectos temporais e materiais da existência.

Por exemplo, uma peça musical convencional termina na nota tônica, dando um sentido de conclusão. A melodia do canto gregoriano, em contraste, quase sempre não faz esta resolução final na última nota, evocando um sentido do infinito, de eternidade. Ademais, pela extrema leveza de seu movimento, o canto gregoriano é interpretado da maneira a mais espiritual possível, embora permaneça dentro do domínio dos sentidos, pois, como comenta D. Mocquereau, ele “toma emprestado o mínimo possível do mundo material e se move, invisivelmente; ele avança, porém, imponderavelmente”. 34

Estas sugestões de imaterialidade e eternidade ecoam no canto gregoriano, e, quando assimilado ao longo do tempo pela alma, podem ajudar na formação de um estado de espírito correspondente e salutar. Para o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, ouvir canto gregoriano “lembra o aspecto penitencial, adverte contra o vazio das coisas terrenas, contra o mentiroso dos élans excessivos do próprio homem. Assim é o gregoriano. Das alegrias exultantes do Te Deum aos recolhimentos solenes do Tantum ergo, é a música que tem essa qualidade incomparável de exprimir a atitude perfeita, o exato grau de luz da alma reta e verdadeiramente inocente quando se coloca diante de Deus”. 35

Depois de haver feito o leitor passear pelos panoramas do canto gregoriano, o qual coloca a alma na dimensão do sagrado tão distinto do mundo em que vivemos, ao terminar queremos deixar-lhe um conselho: “Procure ter seu temperamento no estado do espírito do canto gregoriano, e terá encontrado uma via certa para a sua santificação”. 36

19 SÃO JOÃO CASSIANO. Collationum. Coll.I, c.17: ML 49, 507
20 SÃO BENTO. Regula. C.XIX: ML 66, 475-476.
21 Idem, c.XLII, 669.
22 Idem, Prol., 215.
23 CORRÊA DE OLIVEIRA, Palestra, op.cit.
24 SANTA HILDEGARDA DE BINGEN. Scivias sive Visionum ac Revationum. L.III, v.13: ML 197, 735-736.
25 SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Epistolæ. Ep.CCCXCVIII, n.2: ML 182, 610.
26 Idem, 611.
27 SÃO TOMÁS DE AQUINO. In Psalmos Davidis expositio. Proemium.
28 HERBERT, Rembert. Entrances: Gregorian chant in Daily Life. New York: Church, 1999, p.11.
29 PIO XII. Musicæ sacræ, 25/12/1955, n.3.
30 JOHNER, OSB, Dominic. The Chants of the Vatican Gradual. Collegeville (MS): St. John’s Abbey, 1940, p.10.
31 Cf. JOHNER, OSB, Dominic. A New School of Gregorian Chant. New York, Cincinnati: F. Pustet, 1925, p.252; 256; 294.
32 SANTO AGOSTINHO. Enarrationes in Psalmos. In Psalmo XCIX, n.4-5: ML 36, 1272.
33 SÃO GREGÓRIO I. Homiliæ in Hiezechihelem Prophetam. L.I, hom.1, n.15: ML 76, 793.
34 MOCQUEREAU, OSB, André. Le Nombre Musical Grégorien. Tournai: Desclée, 1932, v.I, p.112.
35 CORRÊA DE OLIVEIRA, Cântico da alma inocente, op. cit., p.3435.
36 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Dístico. In: Liber Cantualis: Hymni et cantica sacra. São Paulo: Artpress, 1989, s.p.

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