Liberdade e disciplina

Ir. Flávia Cristina de Oliveira, EP

Sob influência das ideias da Revolução Francesa, cujo lema era: liberdade, igualdade e fraternidade, a humanidade passou a buscar desnorteadamente uma liberdade desenfreada e mal concebida, com a ilusão de que encontraria a felicidade. Segundo esse princípio, “a liberdade e a igualdade produziam a fraternidade, desde que os homens fossem inteiramente livres de fazer tudo quanto quisessem, fossem totalmente iguais – não houvesse nenhum superior nem inferior –, eles se sentiriam completamente irmãos. Então, a fraternidade seria uma flor nascida dessa dupla semente da liberdade e da igualdade”.1Assim sendo, o indivíduo inteiramente livre seria aquele que fizesse tudo o que há de mais deleitável, sem que ninguém o impedisse.

Vejamos alguns exemplos. Um menino que naturalmente, pela tenra idade, gosta muito de brincar. E para se distrair toma, por hábito, reunir-se com seus companheiros para lutar com espadinhas feitas de taquara, e com as mesmas fingem furar um o olho do outro. A mãe do menino, logo que vê tal brincadeira, toma providências para que ela não se repita e inclusive ameaça de punição àquele que for apanhado em tal brincadeira.

Agora perguntamos: A mãe, tendo esta atitude, agiu tiranicamente impedindo que as crianças fizessem aquilo que a elas parecia muito agradável e suprimiu-lhes a liberdade?

A resposta no-la dá Plinio Correa de Oliveira: “Numa idade extremamente jovem, a criança faz coisas que não são racionais, ela é vítima da tirania da falta de maturidade. Para defendê-la contra essa tirania, os pais obrigam-na a fazer uma coisa ou outra”, e desta forma protegem a liberdade da criança. “É uma proibição na aparência; de fato é uma garantia da liberdade”.2

O mesmo se aplica, por exemplo, em um acontecimento muito frequente nas grandes cidades: o suicídio. Há pessoas que param sobre uma ponte ou viaduto e ficam analisando; em determinado momento sobrevêm-lhes a tentação de se lançar do alto da mesma para se livrar dos problemas da vida, de uma crise ou qualquer outra coisa do gênero. Muitas vezes, a pessoa, levada por um desespero, acaba se atirando mesmo. Para evitar tais ocorrências, existem policiais cuja função é segurar o indivíduo que tenta se suicidar. O fato de a pessoa se lançar da ponte não é um ato de liberdade, mas uma debilidade, uma fraqueza da natureza humana que, face às dificuldades da vida, não tem força para enfrentá-las. Por isso o policial que impede uma pessoa de suicidar-se garante-lhe a liberdade, pois lhe assegura a vida.

Sustenta Dr. Plinio: “proibir uma pessoa de fazer uma coisa que é contra o bom senso, contra a razão, é uma defesa da liberdade”.3 Assim, é errôneo o princípio de liberdade cujo objetivo consiste em afirmar que a liberdade é uma possibilidade dada ao homem pela qual ele pode optar pelo bem ou pelo mal, e que, portanto, o próprio pecado é um ato de liberdade. Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo afirma “todo aquele que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34).

A este respeito esclarece o Pe. Royo Marín:

É grande erro, com efeito, crer que a faculdade ou poder de pecar pertença à essência da liberdade. Pelo contrário, essa defectibilidade da liberdade humana que lhe põe nas mãos o triste privilégio de poder pecar, é um grande defeito e imperfeição da mesma liberdade, que afeta unicamente às criaturas defectíveis […]. A faculdade de poder pecar não é liberdade, mas sim depravação, libertinagem e, em definitivo, triste e vergonhosa escravidão.4

Onde se encontra então esta liberdade extremamente procurada? A liberdade consiste em que o homem siga aquele primeiro impulso que o incita invariavelmente para o bem5. De acordo com o ensinamento de Leão XIII, em sua encíclica Libertas praestantissimum:

Tal é a lei natural, a mais eminente de todas, escrita e gravada no coração de cada ser humano, pois a própria razão humana ordena fazer o bem e proíbe pecar. Mas esta prescrição da razão humana só pode ter força de lei porque é voz e intérprete de uma razão mais elevada, à qual se devem submeter nosso espírito e nossa liberdade (D 3247).

Imaginemos uma gaivota que, após ter levantado voo sobre o mar, aproxima-se das águas para capturar o peixe; mas uma vez apanhado sua presa, tenta voar novamente, mas não consegue, pois foi enredada por um pescador. Imediatamente vem-nos a ideia de que a liberdade da gaivota ficou impedida. Neste caso houve uma real coerção da liberdade, pois é próprio à gaivota alimentar-se dos peixes e levantar voo, sendo este o seu primeiro impulso natural e ordenado para o qual Deus a criou.

Fazendo um paralelo com a gaivota constatamos o que ocorre com o homem. A alma humana tem uma série de primeiros movimentos bons que o inclinam à prática da virtude e, portanto, ao cumprimento da vontade de Deus, assim como a gaivota, por um impulso animal, anseia por voar. De maneira que:

A dignidade do homem exige que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão […] O homem atinge essa dignidade quando, libertando-se das escravidões das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes (VS 42).

Assim sendo, “o homem verdadeiramente livre não é aquele que faz tudo quanto lhe passa pela cabeça, inclusive o mal, mas é o homem que aceita o seu primeiro impulso bom, o segue sempre e não admite embaraços que venham tolher este impulso”.6

Além de seguir este impulso, ele precisa enfrentar uma luta árdua, pois está dito: militia est vitam homines super terram (Jó 7, 1), a vida do homem sobre a Terra é uma constante luta contra as más tendências e obstáculos que procuram afastá-lo deste ideal. Por isso, Deus nos deu uma lei e conforme ponderou o Papa João Paulo II: “Modelada por Deus, a liberdade do homem não só não é negada pela obediência à lei divina, mas apenas mediante essa obediência, ela permanece na verdade e é conforme à dignidade do homem […]” (VS, 42).

1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plínio. O verdadeiro conceito de liberdade. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei. n. 163, out. 2011. p. 10. Este autor será, daqui em diante, referido apenas como Dr. Plinio, no texto.
2 Ibid. p.11.
3 Loc. cit.
4 “Es un gran error, en efecto, creer que la facultad o poder de pecar pertenezca a la esencia de la libertad. Al contrario, esa defectibilidad de la libertad humana que le pone en las manos el triste privilegio de poder pecar, es un gran defecto e imperfección de la misma libertad, sino depravación, libertinaje y, en definitiva, triste y vergonzosa esclavitud” (ROYO MARIN, Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961. p. 167. Tradução da autora).
5 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A liberdade e a virtude. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei. n. 163, out.  2011. p. 22.
6 Ibid. p. 23.

   

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