A paz de Cristo: um objetivo inatingível?

Irmã Maria Angélica Iamasaki, EP

Paz! Paz! Poucas palavras são tão repetidas quanto esta em nossos dias, ante a inclemência de guerras, revoluções, discórdias políticas, violência urbana, desunião familiar e atrocidades provocadas pelo acirramento de ódios étnicos.

Todos a desejam, dela muito se fala e se escreve, por toda parte se propõem meios para alcançá-la, mas… quem sabe dizer precisamente o que é paz? Para uns, ela consiste na ausência de qualquer confronto, físico ou ideológico, mesmo se obtida à custa da renúncia a princípios morais ou a importantes parcelas das próprias convicções. Para outros, viver em paz supõe fugir da realidade em busca de um utópico equilíbrio de espírito, alheio ao que se passa a seu redor. Não faltam também aqueles que a identificam com valores parciais, embora nobres, como o silêncio, a segurança ou o respeito à natureza.

A maior ou menor relação desses conceitos com a paz é inegável. Contudo, todos eles se desviam da essência desse bem fundamental para a sociedade, restringindo seu escopo e profundidade à realização de algum legítimo desejo pessoal.

Ora, “quem não sabe o que procura, não sabe o que encontra”, diz bem a propósito a sabedoria popular.

O que é a paz?

Para o cristão, a paz representa muito mais do que a simples inexistência de luta armada. Ela “não é ausência de guerra, nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica”, 1 lembra o Concílio Vaticano II.

Com razão afirmou Santo Agostinho ser ela um bem tão nobre que, ainda quando considerada apenas sob o ponto de vista terreno, “habitualmente nada se ouve com maior complacência, nada se deseja de mais atraente, enfim, nada se consegue de mais belo”. 2

Não existe paz sem o Criador, pois, ela “comporta uma exigência moral; além disso, tem relação com Deus: é de ordem transcendental e de ordem teologal”

No clássico ensinamento desse insigne Padre da Igreja, que marcou a teologia ocidental e vem ecoando na Cristandade por mais de quinze séculos, encontramos que a paz é a tranquilidade da ordem: “A paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação. […] A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz de casa é a ordenada concórdia entre os que nela mandam e os que obedecem; a paz da cidade, a ordenada concórdia entre governantes e governados. […] A paz de todas as coisas, a tranquilidade da ordem”. 3

Uma bela imagem de ordem — o principal elemento da definição agostiniana — é-nos oferecida pela harmonia sideral. Os astros, quais incontáveis joias refulgentes, preenchem a vastidão do firmamento de maneira singularmente ordenada e bela, dando a impressão de que na gigantesca abóbada celeste impera uma soberana paz. E não podia ser de outra forma, pois Deus “criou os céus com sabedoria” (Sl 135, 5).

Vemos, pois, que quando cada elemento de um conjunto encontra-se em seu devido lugar, cumprindo sua finalidade específica e proporcionando às demais criaturas o melhor de si, origina-se uma harmoniosa tranquilidade, fruto da reta disposição das coisas segundo sua natureza e de acordo com um determinado fim.

Não é qualquer tranquilidade, portanto, que merece ser chamada de paz, mas apenas aquela resultante da ordem. A pseudopaz instaurada com base em alguma situação desordenada, cedo ou tarde ruirá. A partir do momento em que os seres — quaisquer que sejam eles — deixam de agir conforme as regras da ordem, a paz esvanece.
São Tomás de Aquino, na questão da Suma dedicada à paz, mostra como ela está relacionada com o desejo do bem, uma vez que a ordenação interior do homem tende com veemência àquilo que lhe traz felicidade: “A verdadeira paz não pode existir senão com o desejo de um bem verdadeiro, porque todo mal, mesmo sob a aparência de bem pela qual satisfaz parcialmente o apetite, encerra muitas deficiências, e por causa delas o apetite permanece inquieto e perturbado. A verdadeira paz, portanto, só pode existir no bem e entre os bons. Logo, a paz dos maus é aparente e não verdadeira”. 4

Sendo Deus o único Ser capaz de saciar a apetência de infinito do homem, e uma vez que a ordem da criação foi instituída por Ele, podemos concluir não existir paz sem o Criador, pois ela “comporta uma exigência moral; além disso, tem relação com Deus: é de ordem transcendental e de ordem teologal”. 5

A santidade, meio mais eficaz de instaurar a paz

A filial submissão aos desígnios de Deus torna o homem de tal modo equilibrado e fortalecido na virtude, que ele, em consequência, pacifica tudo a seu redor. Onde está um santo, ali há grande paz, porque ele ordena todas as coisas de acordo com o estado de seu interior. Com efeito, a santidade possui mais eficácia na instauração da paz do que os tratados diplomáticos, quase sempre todos condicionados a uma política volúvel, instável e nem sempre ordenada. E os justos desejam ser pacíficos pelo mais elevado motivo: o de serem chamados filhos de Deus (cf. Mt 5, 9).

Em seu livro Jesus de Nazaré, o Papa Bento XVI ressalta que “a inimizade com Deus é o ponto de partida de toda corrupção do homem; superá-la é o pressuposto fundamental para a paz no mundo. Só o homem reconciliado com Deus pode estar reconciliado e em harmonia também consigo mesmo; e somente o homem reconciliado com Deus e consigo mesmo pode difundir paz em seu redor e em todo o mundo”. 6

Na base do ensinamento do atual Pontífice está a repulsa ao pecado, o qual exclui qualquer forma de paz. Nesse sentido, a explicação oferecida pelo Doutor Angélico mostra como uma falsa paz pode enganar o homem, se ele não goza da perfeita união com Deus: “Ninguém é privado da graça santificante a não ser em razão do pecado, razão pela qual o homem se afasta do verdadeiro fim e estabelece o fim em algo não verdadeiro. Assim sendo, seu apetite não adere principalmente ao verdadeiro bem final, mas a um bem aparente. Por esta razão, sem a graça santificante não pode haver verdadeira paz, mas somente uma paz aparente”.7

Portanto, o empenho de estar em ordem com o Criador é condição essencial de qualquer forma de paz. Sem isso, prevalecem os interesses pessoais e os egoísmos, fonte das disputas.

A paz na terra é consequência da paz com Deus

Na Santa Ceia, Nosso Senhor deu-nos como herança um dom precioso: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14,27).

A paz na Terra é consequência natural da paz com Deus, como deixou consignado o Beato João XXIII: “Em última análise, só haverá paz na sociedade humana se essa estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. Assim interroga Santo Agostinho ao homem: ‘Quer a tua alma vencer tuas paixões? Submeta-se a quem está no alto e vencerá o que está embaixo. E haverá paz em ti, paz verdadeira, segura, ordenadíssima. Qual é a ordem dessa paz? Deus comandando a alma, a alma comandando o corpo’”. 8

E o Papa Bento XVI, após ressalvar a relevância dos fatores de ordem cultural, política e econômica para se obter a paz, acrescenta: “Mas, em primeiro lugar a paz deve ser construída nos corações. De fato é neles que se desenvolvem sentimentos que podem alimentá-la ou, ao contrário, ameaçá-la, enfraquecê-la, sufocá-la. Aliás, o coração do homem é o lugar das intervenções de Deus. Portanto, ao lado da dimensão ‘horizontal’ das relações com os outros homens, revela-se de importância fundamental, nesta matéria, a dimensão ‘vertical’ da relação de cada um com Deus, no qual tudo tem o seu fundamento”. 9

Ensina-nos o Doutor Angélico que há no ser humano três classes de ordem: consigo mesmo, com Deus e com o próximo. 10 Donde decorrem três tipos de paz: do homem consigo mesmo, ou paz interior; do homem com Deus, decorrente de sua inteira submissão à vontade divina; e do homem com os seus semelhantes, que consiste em viver em concórdia com todos. A paz numa coletividade será a resultante da concórdia entre os indivíduos que a compõem; a concórdia entre as várias colectividades de uma nação equivale à sua paz interna. E, por fim, a concórdia entre as nações corresponde à tão sonhada paz internacional.

Com razão escreveu São Tomás: “A justiça produz a paz indiretamente, removendo-lhe os obstáculos. Mas a caridade a produz diretamente, porque ela é, por sua própria razão, causa da paz”.11 E a Constituição pastoral Gaudium et spes nos oferece este belo ensinamento: “A paz é assim também fruto do amor, o qual vai além do que a justiça consegue alcançar. A paz terrena, nascida do amor do próximo, é imagem e efeito da paz de Cristo, vinda do Pai. Pois o próprio Filho encarnado, Príncipe da Paz, reconciliou com Deus, pela Cruz, todos os homens; restabelecendo a unidade de todos num só povo e num só corpo, extinguiu o ódio e, exaltado na Ressurreição, derramou nos corações o Espírito de amor”. 12

A paz de Cristo no reino de Cristo

Em sua Encíclica Ubi arcano, o Papa Pio XI valeu-se de uma fórmula em extremo acertada, a qual permanece até nossos dias como o paradigma a ser atingido não só pelos cristãos, mas por toda a humanidade: “A paz de Cristo no reino de Cristo”. 13

Quando, na Santa Ceia, o Senhor transmitiu os últimos ensinamentos aos Apóstolos, deu-nos como herança um dom precioso: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14, 27). Mais tarde, ao aparecer no Cenáculo e encontrar os discípulos amedrontados e pusilânimes, suas primeiras palavras foram: “A paz esteja convosco!” (Jo 20, 19). Ainda outras vezes falou Jesus sobre a paz, mas sempre com uma nota muito peculiar: a sua paz, e não outra qualquer.

Distinta das fruições do mundo, caracterizadas pela agitação que imprimem na alma, a paz de Cristo aquieta as paixões desordenadas e conduz ao “gozo perfeito do bem supremo, que une e pacifica todos os anseios”. 14 Ela “reside nas profundezas da alma”, 15 incita a praticar a justiça unida à caridade e ensina a paciência. Quem possui essa paz ama o direito e a autoridade. Ela não se alimenta de bens perecíveis, mas de realidades sobrenaturais, nem se perturba com as maiores desgraças, porque está fundada sobre a rocha firme da fé.

Dizemos com propriedade ser essa a paz de Cristo porque, antes d’Ele, o mundo vivia nas trevas do paganismo em que vigoravam atrocidades de todos os tipos, prevalecendo a máxima: homo homini lupus — o homem é lobo do homem. Por isso, Santo Efrém de Nisibi pôde afirmar que “no nascimento e na morte de Jesus de Nazaré, o Céu e a Terra se fundem num abraço de paz”. 16

Quanto ao reino messiânico instituído pelo Divino Mestre, este se distingue substancialmente de todos os reinos terrenos, porque jamais existiu um soberano dotado da capacidade de governar o interior de seus súditos. Tal privilégio pertence ao Homem-Deus, que não deseja imperar apenas no exterior, mas sim renovar o âmago de suas criaturas: “Dentro de vós meterei meu espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e observeis os meus preceitos” (Ez 36, 27).

Se fecharmos as portas da alma ao suave jugo de Jesus, e deixarmos nela penetrar o pecado, abandonaremos a paz de Cristo e o reino de Cristo. É por se terem “miseravelmente separado de Deus e de Jesus Cristo” que os homens caíram no abismo de males da I Guerra Mundial, acentuou em sua encíclica Ubi arcano o Papa Pio XI. E acrescentou: “Já que foram renegados os preceitos da Sabedoria cristã, não há motivo para admirar-se de que os germes da discórdia — semeados por toda parte como em solo bem preparado — tenham produzido esse execrável fruto de uma guerra que, longe de enfraquecer pelo cansaço os ódios internacionais e sociais, alimentou-os mais abundantemente pela violência e pelo sangue”. 17

A Igreja é a grande propulsora da paz

Tocante é o relato do Evangelista São Lucas sobre a comoção de Nosso Senhor no Domingo de Ramos, quando Se aproximou da Cidade Santa e chorou sobre ela, dizendo: “Oh! Se também tu, ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz!… Mas não, isso está oculto aos teus olhos” (Lc 19, 42). Ele, o “Príncipe da paz” (Is 9, 5), que viera a este mundo para salvar, é recusado até pelos seus. Portador de divinas soluções para todas as desordens da humanidade, é desprezado por não dar assentimento ao pecado dominante nos corações orgulhosos de uma geração má e perversa.

A nós, porém, filhos da Santa Igreja, a paz de Cristo não é um objetivo inalcançável, porque não está velado aos nossos olhos Quem a pode comunicar. Embora tenha ascendido gloriosamente aos Céus, Ele está presente em seu Corpo Místico, a Santa Igreja Católica, defensora intrépida do direito, da vida, da justiça e da caridade. Ou ainda, como a qualificou o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, “a depositária da Verdade, e Arca dos Sacramentos, inestimável obra-prima de Deus”. 18

Convicto de ser a Igreja a grande propulsora da paz, comenta esse eminente líder católico: “Só as virtudes que a Igreja ensina, e por meio dos Sacramentos ajuda a praticar, é que são realmente o fundamento da paz. E, assim, a virtude só vencerá onde vencer a Santa Igreja de Deus. Em outros termos, não haverá verdadeira paz senão na medida em que houver um triunfo da Santa Igreja. […] A exaltação da Santa Igreja, isto é, que a Igreja seja reconhecida por todos os povos no reinado universal que de direito lhe cabe sobre o mundo inteiro, é este o grande anelo que deve estar indissoluvelmente ligado a todos os nossos anseios de paz”. 19

Que a humanidade tenha, portanto, os olhos fixos na Igreja e ponha amorosamente em prática seus sapienciais ensinamentos, eis o meio seguro de extirpar todas as desordens, individuais e sociais, que campeiam pelo mundo afora e são causa das discórdias, guerras, violências e tantos outros males que afligem o mundo atual. À Santa Igreja se aplica com propriedade a profecia de Isaías: “Eis o que diz o Senhor: vou fazer a paz correr para ela como um rio” (Is 66, 12).

1CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n.78.
2SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. l.19, c.11.
3Idem, 1.19, c.13.
4SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.29, a.2, ad.3.
5HENRY, OP, Antonin-Marcel. Introdução e notas ao Tratado da Caridade. In: Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2004, v.V, p.406, nota a.
6RATZINGER, Joseph. Gesù di Nazaret. Città del Vaticano: Libreria Vaticana, 2007, p.110.
7SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q.29, a.3, ad.1.
8JOÃO XXIII. Pacem in terris, n.164.
9BENTO XVI. Mensagem no 20º aniversário do Encontro Interreligioso de oração pela paz, convocado por João Paulo II, 20/9/2066.
10Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Evangelium Ioannis, c.14, lect.7.
11Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.29, a.3.
12CONCÍLIO VATICANO II, op.cit., ibidem.
13PIO XI. Ubi arcano, 23/12/1922.
14Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.29, a.2, ad.4.
15PIO XI, op. cit., ibidem.
16SANTO EFRÉM DE NISIBI, apud ODEN, Thomas C. (Ed.). La Biblia comentada por los padres de la Iglesia y otros autores de la época patrística. Evangelio según San Lucas. Madrid: Ciudad Nueva, 2006, v.III, p.82.
17PIO XI, op. cit., ibidem.
18CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Opus justitiæ pax. In: O Legionário. São Paulo. N.434. (5/1/1941); p.2
19CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Justitia et pax. In: O Legionário. São Paulo. N.517. (9/8/1942); p.2.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *