“Como foi do agrado do Senhor, assim foi feito”

Mariana Iecker Xavier Quimas de Oliveira

“Se alguém me ama, observará minha palavra” (Jo 14, 23) e “Se guardardes os meus mandamentos, sereis constantes no meu amor, como também eu guardei os mandamentos de meu Pai e persisto no seu amor” (Jo 15, 10) são frases que expressam bem a caridade. Então, aqueles que amam a Deus e guardam seus mandamentos são sempre premiados nesta terra e nada de mal lhes acontece? “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito.” (Jo 15, 7).

Jó- Catedral PamplonaDetenhamo-nos no relato da vida de um personagem que figurou na História muitos séculos antes de Cristo, e que por assim dizer, foi objeto da justiça de Deus: “Havia, na terra de Hus, um homem chamado Jó, íntegro, reto, que temia a Deus e fugia do mal” (Jó 1,1). Diz São Gregório Magno1, que “afastar-se totalmente do mal é começar a não mais pecar por amor a Deus”. Jó era, na linguagem da própria Sagradas Escrituras, justo aos olhos de Deus, a ponto de ser honrado por Ele com o elogio: “Não há ninguém igual a ele na terra” (Jó 1, 8). Se seguíssemos o caminho natural da lógica, deduziríamos que esta alma santa foi cumulada de benefícios divinos merecidamente, como canta o próprio salmista: “Oh, como Deus é bom para os corações retos, e o Senhor para com aqueles que tem o coração puro!” (Si 72) Mas, prossigamos com a narração:

Ora, um dia (…) um mensageiro veio dizer a Jó: Os bois lavravam e as jumentas pastavam (…). De repente, apareceram os sabeus e levaram tudo; e passaram à espada os escravos. Só eu consegui escapar para te trazer a notícia. Estando ele ainda a falar, veio um outro e disse: O fogo de Deus caiu do céu; queimou, consumiu as ovelhas e os escravos. Só eu consegui escapar para te trazer a notícia. (…) Ainda este estava falando e eis que entrou outro, e disse: Teus filhos e filhas estavam comendo e bebendo vinho em casa do irmão mais velho, quando um furacão se levantou de repente do deserto, abalou os quatro cantos da casa e esta desabou sobre os jovens. Morreram todos. Só eu consegui escapar para te trazer a notícia. (…) Satanás retirou-se da presença do Senhor e feriu Jó com uma lepra maligna, desde a planta dos pés até o alto da cabeça. (…) Sua mulher disse-lhe: Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa a Deus, e morre! (Jó 1, 13-16.18-19; 2,7-9)

Entretanto, muito longe de maldizer a Deus, a reação deste justo varão é bem outra: “Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor! Aceitamos a felicidade da mão de Deus; não devemos também aceitar a infelicidade?” (Jó 1, 21; 2, 10) E a versão Vulgata acrescenta: “como foi do agrado do Senhor, assim foi feito”. Jó, neste então, era, no dizer de São Paulo2 aos Coríntios, um vaso de barro que “sofre no exterior as rupturas das úlceras. Por dentro, porém, continua íntegro o tesouro3”. Este justo perdera não só o que mais amava, mas perdera tudo; só lhe restara a esposa, que longe de encorajá-lo, o incitava contra Deus. Sua resposta pode ser considerada não só um ato de integridade, mais de heroicidade. Jó não disse: o Senhor me deu, o diabo tirou, como foi do agrado do demônio assim foi feito4; mas atribuiu a Deus a deserção de seus bens, à maneira do Homem-Deus que sofrendo a paixão por culpa dos judeus declarou a Pilatos: “Não terias poder algum sobre mim, se de cima não te fora dado” (Jo 19, 11).

Não seria plausível que Jó se revoltasse interiormente contra Deus? Sendo ele fiel à tradição de Abraão, conservador da Fé e das virtudes dos patriarcas5, era justo que recebesse tantos males d’Aquele Deus, que segundo São João (1 Jo 4, 8), é amor? Analisando com vagar as Sagradas Escrituras, vemos que não é raro este “proceder” da Divina Providência. É o que relata o Salmista: “Então foi em vão que conservei o coração puro e na inocência lavei as minhas mãos? (…) me indignava contra os ímpios, vendo o bem-estar dos maus: não existe sofrimento para eles, seus corpos são robustos e sadios. Dos sofrimentos dos mortais não participam, não são atormentados como os outros homens” (Sl 72).

Como se justifica este aparente paradoxo? O Professor Plinio Correa de Oliveira6 explica: “Deus permite ao demônio atormentar e tentar por todas as formas os justos, com o intuito de pôr à prova sua fidelidade”.

Não raro, ao considerarmos a trajetória de certos ímpios, vemo-los a correr, desimpedidos, na estrada do mundo, enquanto o homem que procura trilhar as vias da retidão caminha passo a passo, em meio a dificuldades de toda espécie. Por quê? Porque as sendas da perdição são espaçosas e lisas; as de Nosso Senhor são estreitas e penosas, e seu fim é o Calvário7.

A Teologia Católica afirma que por um claro princípio de justiça, Deus permite que os santos sofram na terra e os maus tenham certo sucesso; posto que não existe nem mal, nem bem absolutos, todos praticamos atos bons e ruins que devem ser premiados ou penalizados; uma vez que Deus já tem, desde o início dos tempos, a pré-ciência do destino de cada um dos mortais e, por tanto, do prêmio ou do castigo eterno de cada um, é justo que recompense aqui na terra os atos bons dos que irão se condenar e penalize as imperfeições dos justos8. O mesmo Salmista (Sl 72) compreende este mistério e ratifica:

“Reflito para compreender este problema, mui penosa me pareceu esta tarefa, até o momento em que entrei no vosso santuário e em que me dei conta da sorte que os espera. Sim, vós os colocais num terreno escorregadio, à ruína vós os conduzis. Como de um sonho ao se despertar, Senhor, levantando vos, desprezais a sombra deles. Quando eu me exasperava e se me atormentava o coração, eu ignorava, não entendia, como um animal qualquer. Vossos desígnios me conduzirão, e, por fim, na glória me acolhereis. Se vos possuo, nada mais me atrai na terra. Meu coração e minha carne podem já desfalecer, a rocha de meu coração e minha herança eterna é Deus”.

Entretanto, a Jó este mistério permanece incompreensível: “Mostra-me por que razão me tratas assim. Encontras prazer em oprimir, em renegar a obra de tuas mãos, em favorecer os planos dos maus? (Jó 10, 2-3) E mesmo desconhecendo as razões de seu suplício, bendiz à Deus e proclama sua justiça com valentia diante de seus antigos amigos que dia e noite o incitam a que injurie o nome de Deus: “Ouvi-me, pois, homens sensatos: longe de Deus a injustiça! Longe do Todo-poderoso a iniquidade! Ele trata o homem conforme seus atos, dá a cada um o que merece. É claro! Deus não é injusto, e o Todo-poderoso não falseia o direito” (Jó 34, 10-12).

Se é verdade que “consideradas as coisas sob certo ângulo, o valor de uma criatura humana se mede por sua capacidade de aceitar com coragem e resignação as dores que a Providência permite em seu caminho9”, Jó foi um homem de um valor inestimável. Quem diante de tanto sofrimento, depois de ter perdido família, criados, fortuna, e sendo cumpridor das leis do Todo-Poderoso não se julgaria alvo de grande injustiça? Mas, em virtude desta heróica aceitação incondicional, Deus, agora sim, premeia a Jó por sua fé verdadeira e sua virtude inquebrantável, que não consistia apenas em uma cordial gratidão pelos grandes bens recebidos, mas que era fiel e estava fundada unicamente no Criador, independente de confortos passageiros. “O Senhor abençoou os últimos tempos de Jó mais do que os primeiros” (Jó 42, 12). Jó recebeu tudo o que tinha antes, e em dobro.

Discutem os estudiosos se a História do justo Jó é realmente verossímil ou se é apenas um conto que tem como objetivo ensinar-nos a aceitar os sofrimentos recebidos de Deus. Independente de ser veraz ou não, é certo que este justo varão é um exemplo de virtude para todos os manchados da culpa original, que carregamos o peso das atribulações. É certo também que lembrando a vida de muitos santos e pessoas que se esforçaram por fazer o bem sobre a terra apesar de terem trilhado um caminho espinhoso, estas nem sempre receberam, à primeira vista, o dobro como o recebeu Jó. Entretanto, gozam, certamente, de sua recompensa eterna na beatitude celeste, sem terem de se arrepender por alguma vez terem suspirado ou chorado nos momentos em que deveriam alegrar-se por receberem de Deus uma ocasião para merecer uma recompensa mais abundante.

Tudo isso nos faz ver que seja qual for o modo como vivamos deveríamos receber sempre toda adversidade com alegria. Contrariedade e dificuldades parecem cheias de doçura para aqueles que amam.

1Moralia. Lib. 1, e. 26, 37: PL 75, 544. Tradução da autora.
2 Cf. 2 Cr 4,7.
3 SÃO GREGÓRIO MAGNO. Moralia. Lib. 3, c. 9, 15: PL 75, 606. Tradução da autora.
4 SANTO AGOSTINHO apud LEHONEY, Vital. El santo abandono. Disponível em: http://www.abandono.com/Abandono/ Lehoney/Lehoney2o2.htm. Acesso em 16 set. 2004.
5 Cf HOLZAMMER, Juan B.; SCHUSTER, Ignacio. Historia biblica. Barcelona: Litúrgica española, 1984, y. I, p. 759.
6 A Igreja é o centro da História. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei, n. 59, fey. 2003, P. 24.
7 Id. O partito de Jesuseo partido do mundo. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei, n. 118, jan. 2008, p. 14.
8 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. S. Th. 1, q. 21, a. 4, ad. 3. E também: Id. S. Th, I, q. 14, a.13.
9 CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. Excelências do Sagrado Coração de Jesus. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei, n. 51,jun. 2002, p. 23.