A criação: um dedo a apontar para o céu

Fahima Akram Salah Spielmann

Na criação, Deus muitas vezes se faz “pequeno” para que assim possamos alcançá-Lo, e compreendermos o verdadeiro sentido que as coisas possuem. Pois, entre todas as criaturas terrenas, o homem é o único capaz de pensar e, através do raciocínio, chegar a compreender a transcendência dos seres criados, o verdadeiro sentido que possuem. A esse respeito, já nos cursos filosóficos aprendemos como todo efeito possui uma causa, do mesmo modo remonta a algo superior de seu criador.

Para ajudar o homo viator a não se perder nesse caminho, Deus inscreveu em seu coração um desejo do sublime, o que constitui uma das mais altas dignidades do homem, como nos afirma a Gaudium et Spes1: “o aspecto mais sublime da dignidade humana está nessa vocação do homem à comunhão com Deus. Esse convite que Deus dirige ao homem, de dialogar com Ele, já começa com a existência humana” (GS 19).

Sendo assim, já no estado de inocência original, o homem, tendo suas potências submetidas à razão superior, com um simples olhar de apreensão subiria à causa e ao fim do criado, uma vez que existe na alma humana, por causa de sua natureza material e ao mesmo tempo espiritual, a necessidade de participar do invisível através do visível2.

Contudo, sabendo Deus da imensa dificuldade que teríamos em alcançar o sobrenatural, após o pecado original, deu-nos sensivelmente como que “elevadores”, que nos fizessem chegar até Ele, fim último de tudo. E esse ascensor é a criação que, como um dedo, nos aponta para Deus.

Aguia4Assim, por exemplo, ao vermos uma águia que sem nenhum temor bate suas asas, desafiando os ventos, e que, de repente, em um só lance agarra sua presa e a arrasa; com um olhar mais profundo podemos ver nisso uma analogia com a beleza de uma alma lutando por um ideal, sem deixar se abater pelos ventos contrários da dificuldade que sopram, continua o seu percurso, voando até alcançar sua meta. Personificando, chegamos a Deus, fonte e raiz de toda virtude.

De modo mais sublime podemos dizer da água, elemento tão banal aos nossos olhos, que, entretanto, teve como primeira causa de sua criação o Batismo 3 , regeneração espiritual que sem sua matéria não produziria o que opera.

Entre outros inumeráveis exemplos citemos no próprio ser humano a necessidade da alimentação que, como nos ensina Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, foi imposta com vistas ao Sacramento da Eucaristia. Na mente divina primeiro estava o Pão da Vida e, por este motivo, foi criado no corpo humano o aparelho digestivo4.

Portanto, podemos concluir que com tudo o que existe sensivelmente pode-se fazer uma analogia com o sobrenatural; e como todo o criado, de modo direto ou indireto, ao ser formulado por Deus visava a união com Ele. E foi assim que agiu o Divino Pedagogo, ao fazer o corpo humano, para que este servisse de “metáfora” para o verdadeiro organismo, que é o Corpo Místico de Cristo.

O Corpo Místico de Cristo é a matriz primeira, o analogado primário, a arquetipia do corpo humano. E o Corpo Místico de Cristo, portanto, tem leis e maravilhas muito mais elevadas, muito mais ricas, muito mais profundas e mais amplas que o próprio corpo humano5.

O corpo humano, figura do Corpo Místico de Cristo

Inspirado pelo Espírito Santo, com o intuito de exprimir tal união, o Apóstolo usou várias imagens, tais como edifício, templo, família de Deus (Ef 2, 19-22), esposa de Cristo (Ef 5, 22-23), corpo de Cristo (Ef 1, 23; 2, 16; 3, 6; 4, 4. 12. 16; 5, 23), complemento de Cristo (Ef 1, 23), e em todas elas encontramos a singular expressão da necessidade de união com Cristo Jesus, de modo a viver por Ele, com Ele e n’Ele.

Igreja Tabor ArautosApesar de possuírem semelhantes significados, a que mais se destaca é a do corpo de Cristo, talvez por conter todas e melhor exprimi-las, como aludiu Pio XII em 1943, na sua encíclica Mystici Corporis.

Ao contrário dos outros, o termo “corpo de Cristo” parece ser da criação de São Paulo, referindo-se a ele várias vezes.

Discutem entre si os exegetas qual teria sido a origem deste termo usado pelo Apóstolo. Dizem alguns, o mais provável, que a ideia de Igreja Corpo de Cristo proceda do termo “esposa, corpo do marido”, muito corrente no Antigo Testamento, expressando, sob a figura de matrimônio, o vínculo de Deus com o povo da Aliança (Cf. Is 62, 4-5; Jer 3, 20; Ez 16, 8-29; Os 2, 19-22), portanto muito própria para transpor a imagem de Cristo e sua Igreja. A passagem mais explícita sobre essa apropriação encontramos em Efésios: “o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a Cabeça de seu Corpo, do qual Ele é o Salvador” (Ef 5, 23).

Os leitores, para os quais se dirigiam estas palavras, entendiam-nas muito bem, pois o marido era a cabeça e a esposa, submissa a ele, era o corpo, da mesma forma como a Igreja a Cristo. Esse enlace entre os esposos servia de preparação para compreenderem o amor de Cristo pela Igreja (Ef 5, 33), que levado até as últimas consequências entregou-se inteiramente a Ela (Ef 5, 25).

Inspirou Deus ao apóstolo São Paulo a figura do corpo para simbolizar a união entre Cristo e a Igreja, à maneira da cabeça com o resto do corpo, por diversas razões.

Diz a Lumen Gentium que de sobremaneira quis Deus escolher esta figura, por projetar a intimidade de Cristo com a Igreja, e neste sentido cada cristão deve almejar o máximo de união, fazendo tudo por Ele, com Ele e n’Ele (LG 7).

Para melhor compreendermos essa profunda analogia, cabe a teologia ceder lugar à anatomia.

Ensina a medicina que o corpo, enquanto tal, só pode existir na junção de seus membros, os quais só desempenharão sua função em ligação com a cabeça, lugar mais complexo do corpo, onde residem os principais comandos nervosos e a quase totalidade dos órgãos dos sentidos, além das partes iniciais do aparelho digestivo e respiratório.

Desse modo, por ordem da cabeça, encontramos a suprarrenal enviando um hormônio chamado cortisol, que em dose exata regula o organismo para que ele desperte. Ou então, em meio à concentração do trabalho, sem precisar de uma contínua atenção nossa, o coração continua a pulsar. Paralelamente, o pulmão prossegue sua respiração sem nenhum lapso.

Toda essa ordenação do organismo é realizada pala hipófise, pequena glândula situada no cérebro6.

Com esta pequena amostra, vemos a íntima e essencial junção, dentro do organismo, e a primazia da cabeça em relação aos outros membros, os quais não seriam o que são sem a cabeça; que por sua vez não seria o que é sem os membros; e, com tal união, basta uma agulha perfurar o último dos artelhos, que em três segundos o cérebro receberá informações do ocorrido e com prontidão responderá em socorro, enviando o necessário para o restabelecimento.

Além disso, tudo é animado pela alma, a tal ponto que na separação desta do corpo se produz a morte.

Na ordem sobrenatural, “a comparação da Igreja com o corpo projeta uma luz sobre os laços íntimos entre a Igreja e Cristo. Ela não é somente congregada em torno d’Ele; é unificada n’Ele e em seu Corpo” (CCE 789).

Pungente é ver que sendo Cristo o Fundador da Igreja poderia designar-se sob outras imagens; mas preferiu a do Corpo, para nos atestar algo já contido no início da Revelação: “ossos de meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2, 23). Ou seja, a Igreja, Esposa de Cristo à semelhança da criação de Eva, floresceu do costado de Nosso Senhor Jesus Cristo padecente na Cruz, donde com toda propriedade podia Cristo designar-se de seu Esposo (Mc 2, 19) e Cabeça (Ef 4, 15-16) de sua Igreja.

1 “La más alta razón de la dignidad humana consiste en la vocación del hombre a la comunión con Dios. Ya desde su nacimiento, el hombre está invitado al diálogo con Dios” (Para todas as referêcias da Gaudium et Spes, será usada a edição Epiconsa; Paulinas. Tradução da autora).
2 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiae. III, q. 61, a. 1.
3 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. As criaturas nos oferecem o que não podem dar! Só Deus é o rochedo! : Homilia. São Paulo, 4 dez. 2008. (Arquivo IFTE).
As matérias extraídas de exposições verbais – designadas neste trabalho, segundo sua índole, como “conferências”, “palestras”, “conversas” ou “homilias” – foram adaptadas para a linguagem escrita, sem revisão do autor.
4 Id. A manifestação do amor de Deus às criaturas: Conversa. Lisboa, 26 mar. 2008. (Arquivo IFTE).
5 Id. A humanidade de Jesus Cristo: Conferência. São Paulo, 12 set. 2007. (Arquivo IFTE).
6 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. A Igreja é una, Santa, Católica e Apostólica: Conferência. São Paulo, 1 ago. 2002 (Arquivo IFTE).

One response to “A criação: um dedo a apontar para o céu”

  1. Pio Quimas de Oliveira disse:

    Salve Maria !
    Quando na minha consagração como Terciário, uma das coisas que mais me chamaram a atenção nos Arautos e esta configuração como “calcanhar de Maria”.
    Sublime comparação, pois ainda que uma parte muito humilde do corpo, é justamente o calcanhar, o de Maria, aquele que esmagou a cabeça da “serpente infernal”.
    Deus os abençoe.

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