Abba e a filiação divina

Irmã Clarissa Ribeiro de Sena, EP

“Aproximemo-nos da manjedoura na gruta em Belém e contemplemos um Menino reluzente de vitalidade, sabedoria e graça. A diplomacia divina não podia haver elaborado melhor forma para remediar todos os males trazidos pelo pecado. Um Homem-Deus… […] Ali está Quem não só nos abriu as portas do Céu, mas também nos elevou à categoria de filhos de Deus”(CLÁ DIAS).
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Pela Encarnação e Redenção, não apenas foi reparado o pecado de nossos primeiros pais em que amizade com Deus tinha sido abalada, mas o homem foi reintegrado à ordem sobrenatural, e elevado ao mais alto grau de união com Deus a que pode chegar uma criatura: a filiação divina.

Este novo relacionamento entre Deus e os homens encontra-se bem caracterizado em um sugestivo termo utilizado por escritores sagrados: Abba. Qual é a sua vinculação com a filiação divina?

Muito decidora é a passagem em que os discípulos pedem a Jesus que lhes ensine a rezar. Como observa Von Balthasar, por muito particular que fosse a intimidade de Nosso Senhor com o Pai, Ele não ensina seus discípulos a rezarem de maneira distinta à que Ele mesmo faz; ao contrário, instrui-os a invocá-lo como Pai ― Ἀββά.

O vocábulo ἁββά ― um semitismo lexical ― é usado apenas três vezes no Novo Testamento: em Mc 14,36; Rm 8,15 e Gl 4,615.

Nas três ocorrências, Ἀββά aparece na função de vocativo, indicando uma interpelação a Deus. Seu uso, com esta finalidade, não é registrado em nenhuma passagem do Antigo Testamento, nem nos textos extra-bíblicos. Os autores atribuem este silêncio a um fator linguístico: a origem da palavra ἁββά.

Em aramaico, ἁββά, é originário do linguajar infantil, com o significado de “papai”. No período pré-cristão, recebeu um sentido mais amplo, sendo utilizado também pelos filhos e filhas adultos. Chegou a substituir, nos textos hebraicos, a expressão “meu pai”, significando também “seu pai” e “nosso pai”; suplantou, ademais, a forma determinada do substantivo “pai”. Contudo, apesar destes desenvolvimentos, não se olvidou sua procedência de um balbucio infantil. Assim, aplicar a Deus um termo tão corriqueiro e familiar, talvez tenha soado um tanto desrespeitoso aos compatrícios de Jesus. O mesmo não ocorreu com São Marcos, que não hesitou em colocá-lo nos lábios do Divino Mestre.

horto 150Nos Evangelhos, a invocação Ἀββά, está atestada expressamente somente na perícope da Oração no Horto que nos oferece São Marcos. Contudo, afirmam vários autores que é a palavra aramaica Ἀββά, que subjaz nas várias versões gregas da palavra “Pai”, usada por Jesus ― segundo o testemunho unânime dos Evangelhos ― para dirigir-se a Deus em todas as suas orações. Portanto, “quando Jesus se dirigia a Deus chamando-o “Pai”, utilizava o termo arameu Abba”.

Os exegetas fundamentam esta afirmação na oscilação das formas da interpelação a Deus como Pai apresentadas pela tradição: “Encontramos, de um lado, a forma grega correta do vocativo πάτερ , acompanhado de pronome pessoal em Mateus (πάτερ μον), e, do outro lado, o nominativo com artigo (ὁ πάτερ) como vocativo. Chama especial atenção que numa só e mesma oração encontramos lado a lado πάτερ e ὁ πάτερ vocativo, a saber em Mt 11.25s par. Lc 10.21”.
Esta variação aponta para um Ἀββά, subjacente que, como visto anteriormente, era usado tanto como interpelação, quanto como o estado determinado “o pai”, ou como a forma com o sufixo da primeira pessoa (“meu pai”, “nosso pai”).

Outro fato reforça esta hipótese: o testemunho de Rm 8,15 e Gl 4,6 que revela o uso de Ἀββά, nas comunidades cristãs primitivas, costume pressuposto por São Paulo tanto em suas próprias comunidades (Gálatas), quanto naquelas não fundadas por ele (Romanos). Para Kittel, o Ἀββά ὁ Πάτερ presente nas duas epístolas, evoca uma reminiscência litúrgica, possivelmente o início do “Pai-Nosso”. Tal proposição é corroborada pelo verbo χράζω que, segundo Kuhn, tem o “sentido de clamor extático na assembléia da comunidade”. Este uso litúrgico justificaria a familiaridade com a palavra Ἀββά em regiões tão distantes da Palestina. De qualquer forma, a subsistência de um termo de origem aramaica em ambientes estranhos a esta língua, parece indicar ser este um eco da voz do próprio Jesus.

Este é um termo que expressa a peculiar, afetuosa e entranhada relação entre Jesus e o Pai. E é deste invulgar relacionamento, que o Salvador quis fazer partícipes os seus.

O uso de Ἀββά nas cartas paulinas também denota uma experiência, por parte dos primeiros cristãos, da familiaridade com o Pai proclamada e vivida por Jesus; nas duas epístolas, Ἀββά ὁ Πατήρ é mencionado como manifestação do relacionamento filial dos romanos e gálatas com Deus.

Ἀββά! Em uma simples palavra, encontra-se contida tão insigne realidade: pelos méritos de Cristo, somos filhos de Deus! Não nos esqueçamos, porém, de que noblesse oblige. Se Deus assim nos convida a tal intimidade consigo, cabe, de nossa parte, uma resposta à altura. Que esta não seja como a de Adão e Eva no Paraíso; mas semelhante à de Jesus no Horto das Oliveiras ― que antepõe a vontade do Pai à sua ― e a dos discípulos de Roma e da Galácia, convocados por Paulo a viver segundo a fé em Jesus Cristo. Desta forma, poderemos unirmo-nos a eles, e dizer com toda propriedade: Ἀββά ὁ Πατήρ!

7 responses to “Abba e a filiação divina”

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